domingo, 12 de agosto de 2012

Sem Boné, Lupa e Cachimbo (parte final)

V

– Então, a senhora, digo, a viúva Susan Baldoni foi um caso rápido?
Não pude deixar de sentir graça da pegadinha por trás da pergunta dúbia. E como qualquer resposta só serviria para me complicar, simplesmente sorri e me deitei na areia.
Depois de um caso (profissional) resolvido, nada melhor que uma bela praia com uma loira gelada ao lado.
– Não fale assim, querida. Ela tá passando por uma pior.
– Uma pior? Com dois milhões pagos pelo seguro de vida do marido você acha mesmo que ela tá numa pior?
– Que isso, linda! Nada paga a perda de uma pessoa amada.
– Há! Até parece. Você não leu o jornal de hoje, leu.
Ela joga o jornal em meu peito. Logo percebo a foto de Susan de vestido preto e óculos escuros ao lado de seu advogado. A reportagem vinha dizendo o que eu já sabia e o que a polícia logo descobriu. Lúcio Baldoni não era tão bom advogado assim. E pelo visto, descobriu que alguns mendigos ganhavam mais em um dia sentados do que ele rodando os fórum da cidade. A reportagem fez sua pesquisa. A maioria conseguia aí quase um salário mínimo por mês. Só que bons pontos e pouco concorrência pode render bem mais. E o Dr. Lúcio se mostrou melhor estrategista do que advogado. Deve ter sido com sua andanças que percebeu um bom ponto em rua bem frequentada e sem mendigos.. Pudera. Não havia marquises e nenhum outro lugar em que pudessem se abrigar. Mas ele não precisava de abrigo. Tinha sua casa para voltar ao final do dia. Segundo alguns comerciantes, ele era um mendigo discreto. Não perturbava muito. No entanto, baseada nos extratos bancários do falecido, a polícia chegou à conclusão que ele arrecadava em média uns R$ 300,00 por dia. Como não ficava no ponto todos os dias, a média do mês chegava a uns R$ 7.000,00. Isso é salário de alguns bons executivos e sem descontar nem um centavo de imposto. E mesmo não sendo tão bom advogado, ganhava algumas causas que na média mensal rendia outros R$ 4.000,00. Nada ruim para um casal sem filhos. Infelizmente ele deu azar de topar com algum maníaco matador de mendigos. Deste a polícia não tem ainda nenhuma pista.
A reportagem ainda informa que a mãe da vítima acusa a viúva de ter levado o marido a este ato de desespero devido sua vaidade e gastos de madame, sem nem sequer pensar em trabalhar para ajudar nas despesas.
Ainda atordoada pelos acontecimentos e cansada das acusações, a Sra. Susan Baldoni viajou para Miami.
Esta última parte Elena fez questão de destacar circulando com seu baton.
– Então, Miami é ou não é um bom lugar para passar um luto? O coitado ainda tá esfriando no túmulo e olha só quem que tá descansando em paz!
Não dá para descordar dela. Mesmo que desse, não tentaria.
Só que a vida é assim mesmo. Nem todas as mulheres amam seus maridos. Mesmo que amem, uma vez morto, acabou. Não há porque esperar o corpo se decompor no túmulo para seguir em frente. E se o marido deixou um gordo seguro de vida, porque não usar?
Jogo o jornal de lado e fecho os olhos.
Elena logo vai entrar na água, se acalmar, voltar e me pedir para passar o bronzeador. E os marmanjos ficarão olhando com inveja. É assim. A vida segue seu rumo.
Pobre Susan...
Bem, nem tão pobre. Além dos dois milhões, tem o apartamento que vale cerca de quinhentos mil reais. Estava financiado em nome de Lúcio. Como estes financiamentos são em prazos muito longos - cerca de vinte anos - os bancos costumam ter seguros atrelados. Com a morte do tomador do crédito, o seguro quitou o saldo devedor. E ainda tem o Corola, o golzinho...
Escritório, estacionamento, Corola, rua, trânsito, estacionamento, rua, trânsito, estacionamento, Gol.
Susan... Nariz coçando.
“Meu marido era, é um homem maravilhoso”
Olhar para o horizonte.

Abro os olhos meio que repentinamente.
Hum...
Dois carros.
Três vagas de estacionamento.
Tá. Isso até entendo. O Dr. Lúcio Baldoni tinha seu nome e vida social para manter. Ninguém podia saber que boa parte de sua renda vinha de ser pedinte. Assim, usava o Corola em seu círculo social e familiar. Mas não poderia chegar com ele nas redondezas do seu “segundo emprego” sem chamar a atenção. Daí o golzinho. Tão comum nos dias de hoje que chama menos atenção que Fusca.
Elena se levanta e vai para seu banho de mar.
Certo. Temos então: casa, Corola, primeiro estacionamento, escritório. Era bom ser visto circulando por ali. Depois podia sair e todos pensariam que estava em seus afazeres profissionais. Assim: escritório, Corola, segundo estacionamento. Este em uma área neutra, onde ninguém o poderia reconhecer nem como advogado, nem como mendigo. Segundo estacionamento, Golzinho, terceiro estacionamento. Este com muitos caros populares e boa circulação. Duvido que saísse do carro já trajado de mendigo. Provavelmente usava roupas simples e terminava sua transformação em algum canto discreto.
Como Lúcio foi encontrado morto em seus trajes de pedinte, então o golzinho estava no lugar certo. Mas o Corola...
De alguma forma o Corola saiu do segundo estacionamento e voltou para o primeiro. Ou isso, ou neste dia Lúcio usou outro tipo de transporte.
Não. Coincidência demais.
Susan. Susan coçando o nariz. Um clássico gesto involuntário da mentira. Como se quisesse esconder os lábios que não dizem a verdade.
Elena caminha de volta das águas. E dizem que sereias não existem.
O olhar de Susan pela janela, admirando o horizonte, enquanto falava do marido.
Tenho que fazer um curso de psicologia. Meu instinto me diz que ela vislumbrava o futuro e não o passado.
– Filha da Puta!...
– O quê?!
– Hein? Oh, não, querida... Não é contigo, minha linda. Claro que não.
Elena se senta ao meu lado com cara de não muito convencida.
– Linda! - tento beijá-la, mas ela se esquiva. – Ora, que isso?.. Sabe que jamais falaria isso para você. E que eu tava pensando na Susan... não!, quero dizer, no meu caso dela. - ela faz menção de se levantar, mas a seguro pelo braço. – Caso profissional. Profissional. Acho que você tem razão sobre ela.
Minha sereia se acalma e me olha sério.
– Então ela é uma filha da puta?
– Sim. Bem, acho que sim. Não gosto muito desse termo. Ofende quem não tem nada a ver.
Exponho a ela meu raciocínio.
– Tá. Entendi. - diz, já bem calma. – Faz sentido o que você diz. Mas é tudo muito vago, não? Apenas suposição. Que foi? Não me olha assim. Não a estou defendendo. Só acho que você precisa de provas concretas.
– Sim, é verdade. O ideal seria a arma do crime.
– Acha mesmo que ela teve coragem de atirar no marido?
– Não. O que me faz pensar que ela não está viajando sozinha.
– Ah, tá! A esposa que seduz um amante e o convence a matar o marido para ela herdar sua grana e os dois viverem felizes em uma ilha paradisíaca. Você tem lido muito romance policial.
– Muitas páginas policiais. - corrijo.
– Aí é que tá! É meio difícil acreditar que haja um assassino de mendigos e que o amante simplesmente aproveitou a oportunidade para matar o dr. Lúcio e jogar a culpa nesse assassino. Não. Quem matou o dr. Lúcio, matou também os outros mendigos para despistar. Uns dois a mais bastariam. Só que a polícia não tava dando a mínima pro caso. O corpo do dr. Lúcio iria ser enterrado como indigente e a pessoa do advogado dada como desaparecida. Até Susan herdar os bens e o seguro querer pagar alguma coisa ia ser muita briga na Justiça. Afinal, sumido não é morto.
– Então o amante teve que incrementar sua série de assassinatos para chamar a atenção da mídia e uma resposta da polícia.
– Exato. Mesmo assim, podia demorar. Pior. O interesse desperto para o assassino de mendigos fez a polícia esquecer o caso do dr. Lúcio. Mais ainda. Quanto mais mexessem no caso, mais perto poderiam ficar da verdade. Esperar os fatos se desenrolarem estava ficando perigoso.
– Melhor então a madame contratar um detetive particular para achar o corpo do dr. Lúcio. E usar um vestido tirado de filme noir para melhor motivá-lo a resolver o caso em um dia.
– O cheque foi bem motivador...
– Sei... Mas e ai? Se tudo isso for verdade, a madame e o amante se safaram num final feliz no exterior.
– Se não houver mais mendigos assassinados com a mesma arma por alguns dias, pode ter certeza que sim.
– Nada justo, isso!
– Bem vinda ao mudo real, linda. Digo mais. Se o tal amante foi tão esperto a ponto de não ser visto por ninguém, então ele certamente já limpou e se livrou da arma do crime. E o otário que a usar e der o azar de cair nas mãos da polícia vai servir de bode expiatório. Vai ser caso de mendigo encerrado e arquivado.
– E ninguém nunca vai se lembrar de um tal dr. Lúcio Baldoni e seu linda esposa ardilosa. Não me conformo!
– Se te conforta, ela cometeu um erro.
– Ah, é? Qual?
– Achar que um milhão de reais é dinheiro.
– E não é?
– Para mim, um pobre coitado, é. Para alguém que sabe usá-lo como capital para gerar bons negócios, é. Para uma madame gastadeira e seu amante aproveitador, não. Quanto você acha que custa um apartamento em Miami?
– Tá me dizendo que ela continua pobre e não sabe disso?
– Sim. E dentro de alguns meses saberá.
– Aí estará sem dinheiro, sem marido generoso e sem amante prestativo.
– Terá sorte ainda, se ele não quiser queimar arquivo só por garantia. Não tem jeito, linda. De uma forma ou de outra aqui se paga o que aqui se faz.
– Tá, você me convenceu. Mas ainda continua sendo tudo um exercício de especulação. - ela se deita junto a mim.
Minha intuição me diz que tô certo. O tempo e as manchetes nos jornais confirmarão. Pelo menos o cheque tinha fundos. Deu até para concertar o ar-condicionado do golzinho ( - R$...) e as contas atrasadas ( - R$ …..) e o aluguel do mês ( - R$ …......). Só falta comprar as alianças ( - R$..............................................).
– Ai, ai... - me levanto.
– Ei, querido, que foi? Onde você vai?
– Comprar um caneco.





FIM