domingo, 12 de agosto de 2012

Sem Boné, Lupa e Cachimbo (parte IV)

IV
– Deixe ver se entendi, sr. José Maria da Silva, vulgo Victor Liev. - diz, em tom de gracejo, o delegado Raí. Creio que testar a chave em vários gols não foi uma boa ideia. O funcionário do local desconfiou e chamou a polícia. – O senhor é detetive particular e está investigando o sumiço do advogado Dr. Baldoni. Correto?
– Sim, senhor. - disse, sem querer rebater o olhar inquisidor dele.
– Felizmente, a Sra. Baldoni confirmou sua história. E o delegado responsável pelo caso, também. Mas vou ser sincero. Não gosto de amadores interferindo e atrapalhando o trabalho da polícia.
Amador? Tenho até certificado e licença.
– Tô liberado?
Ele me olha sem esconder um aborrecimento. Ia até falar algo mais, quando foi interrompido por um subordinado.
– Temos mais um, delegado.
Ele se levanta, joga os meus documentos em minha direção.
– Caia fora. Estamos sem tempo para perder com madames e maridos fujões. Mas se descobrir algo importante, ligue para o delegado Caio.
E sai, com ele quase me empurrando para fora de seu pequeno escritório. Sorte a minha não terem achado a aliança no bolso de minha calça jeans. Depois de devidamente identificado e sem portar arma, não fizeram questão de uma revista mais detalhada. Só não deu para escapar de uma visita à delegacia.
O delegado Caio é o responsável pela investigação do sumiço do Dr. Baldoni. No entanto, ele e seus colegas de outras delegacias estão mais preocupados em encontrar o assassino de mendigos. Cada vez que um é morto os jornais fazem sua crítica social e esmagam os políticos, que por sua vez fazem os telefones dos responsáveis pela segurança pública tocarem. Assim, a pressão para se achar o criminoso é enorme.
Saio da delegacia e pego um ônibus até onde deixei o Corola.
Quê? Táxi? Vocês nem imaginam o preço da corrida...
Quero curtir um pouco mais o carrão. No entanto, o dia já deu o tinha que dar e eu já tô doido para deitar um pouco. Assim, pego o caminho mais curto para a garagem.
Entro novamente no meu quiném. Está decidido. Ainda vou ter um carro... Ainda vou ter um Corolla... Mas a aliança em meu bolso me lembra que tenho bens mais importantes à adquirir.
Ligo para Elena. Toca até cair na caixa-postal.
Mulheres...
Ligo o motor e estendo a mão para o botão do ar-condicionado. Ah, sim. Lembrei. Não tem. É tão fácil se acostumar com o que é bom.
E é tão frustrante voltar ao que não é tanto assim.
Tá. Tô reclamando muito. Pelo menos o meu tem um cheiro bom.
O motor morre bem no meio de uma manobra de ré.
Cheiro ruim. Cheiro de roupa suja. Mendigos. Mendigos mortos. Assassinados.
Ligo novamente o motor e volto para a vaga.
Pego o meu celular e acesso a internet. É um pouco incomodo usá-lo para isso. Mas preciso verificar algo.
Consegui. Um site de direitos humanos está divulgando as fotos dos mendigos assassinados. Alguns deles tem nome e alguns dados a mais. Três estão como desconhecidos. O site reclama da demora da polícia em identificar os corpos. Alegam que sequer tiraram as digitais.
Amplio o máximo que posso as fotos uma por uma. Algumas são antigas, cedidas por amigos das vítimas. Outras são após o óbito. Uma delas me chama a atenção.
Ligo o motor e volto à delegacia.

Demorei um pouco a convencer o delegado a me deixar ver um dos corpos. Creio que a ideia de ter um advogado entre as vítimas não lhe agradava. Mas enfim, em face a semelhança das fotos do site com as do meu cliente ele cedeu. Assim, cá estou eu em frente a um corpo que já devia está descansando em paz.
O legista tira o lençol que o cobre. Apesar do rosto não estar tão bem quanto o dos fotos, algumas pequenas pintas e leves manchas não deixam dúvidas de que é ele. A pedido do delegado o legista abre a boca do falecido. Os dentes, apesar de tortos, estão bem tratados.
Para mim, caso encerrado. No entanto, Susan ainda precisava vir reconhecer o corpo do marido.
– Mas que diabos um advogado fazia vestido como mendigo?!
Pelo estado de nervo do delegado, prefiro não tecer terias com ele. Só agradeço a gentileza e me retiro, pensando no que direi à minha cliente.
No meu serviço normalmente trago más notícias aos meus clientes. Normal. Afinal, se me procuram, é porque as coisas já não iam bem. Mesmo assim é difícil.
“ – Sim, sua esposa tá te traindo.”
“ – Sim, seu genro desviou dinheiro de sua empresa.”
“ – Sim, seu marido pula a cerca. Não, a estagiária é inocente. Já o entregador de água...”
Toco o interfone. Susan pede para que eu suba.
Nestas horas gostaria de que Elena viesse comigo. Mas não é muito profissional. Tenho que dizer à minha cliente que agora ela é viúva. Tenho que dizer à minha cliente loiraça e gostosa que agora ela é viúva e tentar consolá-la em meu braços.
Vou te dizer! O ser humano não vale nada. Como pensei tão rápido num cena oportunista nessa? Ai, os pais de Elena é que estão certos.
Susan já espera de porta aberta. Sempre bem vestida.
Não sei se meu jeito me denunciou. Só sei que percebo o semblante dela se alterar depressa, chegando ao nervosismo com choro e sussurrando uns “não”.
Sem saber o que dizer, faço o que tarde percebo ser um tiro de misericórdia. Tiro a aliança do marido dela do meu bolso e a coloco em suas mãos.
Ela perde as forças e sou obrigado a ampará-la em meus braços.
Vejo a aliança rolar pelo chão.
Serviço feito e bem feito. Já posso descontar o cheque.



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