IV
– Deixe ver se entendi, sr. José Maria da Silva, vulgo Victor
Liev. - diz, em tom de gracejo, o delegado Raí. Creio que testar a chave em vários
gols não foi uma boa ideia. O funcionário do local desconfiou e
chamou a polícia. – O senhor é detetive particular e está investigando o sumiço do advogado Dr. Baldoni.
Correto?
– Sim, senhor. - disse, sem querer rebater o olhar inquisidor
dele.
– Felizmente, a Sra. Baldoni confirmou sua história. E o
delegado responsável pelo caso, também. Mas vou ser sincero. Não
gosto de amadores interferindo e atrapalhando o trabalho da polícia.
Amador? Tenho até certificado e licença.
– Tô liberado?
Ele me olha sem esconder um aborrecimento. Ia até falar algo
mais, quando foi interrompido por um subordinado.
– Temos mais um, delegado.
Ele se levanta, joga os meus documentos em minha direção.
– Caia fora. Estamos sem tempo para perder com madames e maridos
fujões. Mas se descobrir algo importante, ligue para o delegado
Caio.
E sai, com ele quase me empurrando para fora de seu pequeno
escritório. Sorte a minha não terem achado a aliança no bolso de
minha calça jeans. Depois de devidamente identificado e sem portar
arma, não fizeram questão de uma revista mais detalhada. Só não
deu para escapar de uma visita à delegacia.
O delegado Caio é o responsável pela investigação do sumiço do
Dr. Baldoni. No entanto, ele e seus colegas de outras delegacias
estão mais preocupados em encontrar o assassino de mendigos. Cada
vez que um é morto os jornais fazem sua crítica social e esmagam os
políticos, que por sua vez fazem os telefones dos responsáveis
pela segurança pública tocarem. Assim, a pressão para se achar o
criminoso é enorme.
Saio da delegacia e pego um ônibus até onde deixei o Corola.
Quê? Táxi? Vocês nem imaginam o preço da corrida...
Quero curtir um pouco mais o carrão. No entanto, o dia já deu o
tinha que dar e eu já tô doido para deitar um pouco. Assim, pego o
caminho mais curto para a garagem.
Entro novamente no meu quiném. Está decidido. Ainda vou ter um
carro... Ainda vou ter um Corolla... Mas a aliança em meu bolso
me lembra que tenho bens mais importantes à adquirir.
Ligo para Elena. Toca até cair na caixa-postal.
Mulheres...
Ligo o motor e estendo a mão para o botão do ar-condicionado.
Ah, sim. Lembrei. Não tem. É tão fácil se acostumar com o que
é bom.
E é tão frustrante voltar ao que não é tanto assim.
Tá. Tô reclamando muito. Pelo menos o meu tem um cheiro bom.
O motor morre bem no meio de uma manobra de ré.
Cheiro ruim. Cheiro de roupa suja. Mendigos. Mendigos mortos.
Assassinados.
Ligo novamente o motor e volto para a vaga.
Pego o meu celular e acesso a internet. É um pouco incomodo
usá-lo para isso. Mas preciso verificar algo.
Consegui. Um site de direitos humanos está divulgando as fotos
dos mendigos assassinados. Alguns deles tem nome e alguns dados a
mais. Três estão como desconhecidos. O site reclama da demora da
polícia em identificar os corpos. Alegam que sequer tiraram as
digitais.
Amplio o máximo que posso as fotos uma por uma. Algumas são
antigas, cedidas por amigos das vítimas. Outras são após o óbito.
Uma delas me chama a atenção.
Ligo o motor e volto à delegacia.
Demorei um pouco a convencer o delegado a me deixar ver um dos
corpos. Creio que a ideia de ter um advogado entre as vítimas não
lhe agradava. Mas enfim, em face a semelhança das fotos do site com
as do meu cliente ele cedeu. Assim, cá estou eu em frente a um
corpo que já devia está descansando em paz.
O legista tira o lençol que o cobre. Apesar do rosto não estar
tão bem quanto o dos fotos, algumas pequenas pintas e leves manchas
não deixam dúvidas de que é ele. A pedido do delegado o legista
abre a boca do falecido. Os dentes, apesar de tortos, estão bem
tratados.
Para mim, caso encerrado. No entanto, Susan ainda precisava vir
reconhecer o corpo do marido.
– Mas que diabos um advogado fazia vestido como mendigo?!
Pelo estado de nervo do delegado, prefiro não tecer terias com
ele. Só agradeço a gentileza e me retiro, pensando no que direi à
minha cliente.
No meu serviço normalmente trago más notícias aos meus clientes.
Normal. Afinal, se me procuram, é porque as coisas já não iam
bem. Mesmo assim é difícil.
“ – Sim, sua esposa tá te traindo.”
“ – Sim, seu genro desviou dinheiro de sua empresa.”
“ – Sim, seu marido pula a cerca. Não, a estagiária é
inocente. Já o entregador de água...”
Toco o interfone. Susan pede para que eu suba.
Nestas horas gostaria de que Elena viesse comigo. Mas não é
muito profissional. Tenho que dizer à minha cliente que agora ela é
viúva. Tenho que dizer à minha cliente loiraça e gostosa que
agora ela é viúva e tentar consolá-la em meu braços.
Vou te dizer! O ser humano não vale nada. Como pensei tão
rápido num cena oportunista nessa? Ai, os pais de Elena é que
estão certos.
Susan já espera de porta aberta. Sempre bem vestida.
Não sei se meu jeito me denunciou. Só sei que percebo o
semblante dela se alterar depressa, chegando ao nervosismo com choro
e sussurrando uns “não”.
Sem saber o que dizer, faço o que tarde percebo ser um tiro de
misericórdia. Tiro a aliança do marido dela do meu bolso e a
coloco em suas mãos.
Ela perde as forças e sou obrigado a ampará-la em meus braços.
Vejo a aliança rolar pelo chão.
Serviço feito e bem feito. Já posso descontar o cheque.
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