V
– Então, a senhora, digo, a viúva Susan Baldoni foi um caso
rápido?
Não pude deixar de sentir graça da pegadinha por trás da
pergunta dúbia. E como qualquer resposta só serviria para me
complicar, simplesmente sorri e me deitei na areia.
Depois de um caso (profissional) resolvido, nada melhor que uma
bela praia com uma loira gelada ao lado.
– Não fale assim, querida. Ela tá passando por uma pior.
– Uma pior? Com dois milhões pagos pelo seguro de vida do
marido você acha mesmo que ela tá numa pior?
– Que isso, linda! Nada paga a perda de uma pessoa amada.
– Há! Até parece. Você não leu o jornal de hoje, leu.
Ela joga o jornal em meu peito. Logo percebo a foto de Susan de
vestido preto e óculos escuros ao lado de seu advogado. A
reportagem vinha dizendo o que eu já sabia e o que a polícia logo
descobriu. Lúcio Baldoni não era tão bom advogado assim. E pelo
visto, descobriu que alguns mendigos ganhavam mais em um dia sentados
do que ele rodando os fórum da cidade. A reportagem fez sua
pesquisa. A maioria conseguia aí quase um salário mínimo por mês.
Só que bons pontos e pouco concorrência pode render bem mais. E o
Dr. Lúcio se mostrou melhor estrategista do que advogado. Deve ter
sido com sua andanças que percebeu um bom ponto em rua bem
frequentada e sem mendigos.. Pudera. Não havia marquises e nenhum
outro lugar em que pudessem se abrigar. Mas ele não precisava de
abrigo. Tinha sua casa para voltar ao final do dia. Segundo alguns
comerciantes, ele era um mendigo discreto. Não perturbava muito.
No entanto, baseada nos extratos bancários do falecido, a polícia
chegou à conclusão que ele arrecadava em média uns R$ 300,00 por
dia. Como não ficava no ponto todos os dias, a média do mês
chegava a uns R$ 7.000,00. Isso é salário de alguns bons
executivos e sem descontar nem um centavo de imposto. E mesmo não
sendo tão bom advogado, ganhava algumas causas que na média mensal
rendia outros R$ 4.000,00. Nada ruim para um casal sem filhos.
Infelizmente ele deu azar de topar com algum maníaco matador de
mendigos. Deste a polícia não tem ainda nenhuma pista.
A reportagem ainda informa que a mãe da vítima acusa a viúva de
ter levado o marido a este ato de desespero devido sua vaidade e
gastos de madame, sem nem sequer pensar em trabalhar para ajudar nas
despesas.
Ainda atordoada pelos acontecimentos e cansada das acusações, a
Sra. Susan Baldoni viajou para Miami.
Esta última parte Elena fez questão de destacar circulando com seu
baton.
– Então, Miami é ou não é um bom lugar para passar um luto? O
coitado ainda tá esfriando no túmulo e olha só quem que tá
descansando em paz!
Não dá para descordar dela. Mesmo que desse, não tentaria.
Só que a vida é assim mesmo. Nem todas as mulheres amam seus
maridos. Mesmo que amem, uma vez morto, acabou. Não há porque
esperar o corpo se decompor no túmulo para seguir em frente. E se o
marido deixou um gordo seguro de vida, porque não usar?
Jogo o jornal de lado e fecho os olhos.
Elena logo vai entrar na água, se acalmar, voltar e me pedir para
passar o bronzeador. E os marmanjos ficarão olhando com inveja. É
assim. A vida segue seu rumo.
Pobre Susan...
Bem, nem tão pobre. Além dos dois milhões, tem o apartamento que
vale cerca de quinhentos mil reais. Estava financiado em nome de
Lúcio. Como estes financiamentos são em prazos muito longos -
cerca de vinte anos - os bancos costumam ter seguros atrelados. Com
a morte do tomador do crédito, o seguro quitou o saldo devedor. E
ainda tem o Corola, o golzinho...
Escritório, estacionamento, Corola, rua, trânsito,
estacionamento, rua, trânsito, estacionamento, Gol.
Susan... Nariz coçando.
“Meu marido era, é um homem maravilhoso”
Olhar para o horizonte.
Abro os olhos meio que repentinamente.
Hum...
Dois carros.
Três vagas de estacionamento.
Tá. Isso até entendo. O Dr. Lúcio Baldoni tinha seu nome e vida
social para manter. Ninguém podia saber que boa parte de sua renda
vinha de ser pedinte. Assim, usava o Corola em seu círculo social e
familiar. Mas não poderia chegar com ele nas redondezas do seu
“segundo emprego” sem chamar a atenção. Daí o golzinho. Tão
comum nos dias de hoje que chama menos atenção que Fusca.
Elena se levanta e vai para seu banho de mar.
Certo. Temos então: casa, Corola, primeiro estacionamento,
escritório. Era bom ser visto circulando por ali. Depois podia sair
e todos pensariam que estava em seus afazeres profissionais. Assim:
escritório, Corola, segundo estacionamento. Este em uma área
neutra, onde ninguém o poderia reconhecer nem como advogado, nem
como mendigo. Segundo estacionamento, Golzinho, terceiro
estacionamento. Este com muitos caros populares e boa circulação.
Duvido que saísse do carro já trajado de mendigo. Provavelmente
usava roupas simples e terminava sua transformação em algum canto
discreto.
Como Lúcio foi encontrado morto em seus trajes de pedinte, então o
golzinho estava no lugar certo. Mas o Corola...
De alguma forma o Corola saiu do segundo estacionamento e voltou
para o primeiro. Ou isso, ou neste dia Lúcio usou outro tipo de
transporte.
Não. Coincidência demais.
Susan. Susan coçando o nariz. Um clássico gesto involuntário da
mentira. Como se quisesse esconder os lábios que não dizem a
verdade.
Elena caminha de volta das águas. E dizem que sereias não
existem.
O olhar de Susan pela janela, admirando o horizonte, enquanto falava
do marido.
Tenho que fazer um curso de psicologia. Meu instinto me diz que ela
vislumbrava o futuro e não o passado.
– Filha da Puta!...
– O quê?!
– Hein? Oh, não, querida... Não é contigo, minha linda. Claro
que não.
Elena se senta ao meu lado com cara de não muito convencida.
– Linda! - tento beijá-la, mas ela se esquiva. – Ora, que
isso?.. Sabe que jamais falaria isso para você. E que eu tava
pensando na Susan... não!, quero dizer, no meu caso dela. - ela faz
menção de se levantar, mas a seguro pelo braço. – Caso
profissional. Profissional. Acho que você tem razão sobre ela.
Minha sereia se acalma e me olha sério.
– Então ela é uma filha da puta?
– Sim. Bem, acho que sim. Não gosto muito desse termo. Ofende
quem não tem nada a ver.
Exponho a ela meu raciocínio.
– Tá. Entendi. - diz, já bem calma. – Faz sentido o que você
diz. Mas é tudo muito vago, não? Apenas suposição. Que foi?
Não me olha assim. Não a estou defendendo. Só acho que você
precisa de provas concretas.
– Sim, é verdade. O ideal seria a arma do crime.
– Acha mesmo que ela teve coragem de atirar no marido?
– Não. O que me faz pensar que ela não está viajando sozinha.
– Ah, tá! A esposa que seduz um amante e o convence a matar o
marido para ela herdar sua grana e os dois viverem felizes em uma
ilha paradisíaca. Você tem lido muito romance policial.
– Muitas páginas policiais. - corrijo.
– Aí é que tá! É meio difícil acreditar que haja um
assassino de mendigos e que o amante simplesmente aproveitou a
oportunidade para matar o dr. Lúcio e jogar a culpa nesse assassino.
Não. Quem matou o dr. Lúcio, matou também os outros mendigos
para despistar. Uns dois a mais bastariam. Só que a polícia não
tava dando a mínima pro caso. O corpo do dr. Lúcio iria ser
enterrado como indigente e a pessoa do advogado dada como
desaparecida. Até Susan herdar os bens e o seguro querer pagar
alguma coisa ia ser muita briga na Justiça. Afinal, sumido não é
morto.
– Então o amante teve que incrementar sua série de assassinatos
para chamar a atenção da mídia e uma resposta da polícia.
– Exato. Mesmo assim, podia demorar. Pior. O interesse desperto
para o assassino de mendigos fez a polícia esquecer o caso do dr.
Lúcio. Mais ainda. Quanto mais mexessem no caso, mais perto
poderiam ficar da verdade. Esperar os fatos se desenrolarem estava
ficando perigoso.
– Melhor então a madame contratar um detetive particular para
achar o corpo do dr. Lúcio. E usar um vestido tirado de filme noir
para melhor motivá-lo a resolver o caso em um dia.
– O cheque foi bem motivador...
– Sei... Mas e ai? Se tudo isso for verdade, a madame e o amante
se safaram num final feliz no exterior.
– Se não houver mais mendigos assassinados com a mesma arma por
alguns dias, pode ter certeza que sim.
– Nada justo, isso!
– Bem vinda ao mudo real, linda. Digo mais. Se o tal amante foi
tão esperto a ponto de não ser visto por ninguém, então ele
certamente já limpou e se livrou da arma do crime. E o otário que
a usar e der o azar de cair nas mãos da polícia vai servir de bode
expiatório. Vai ser caso de mendigo encerrado e arquivado.
– E ninguém nunca vai se lembrar de um tal dr. Lúcio Baldoni e
seu linda esposa ardilosa. Não me conformo!
– Se te conforta, ela cometeu um erro.
– Ah, é? Qual?
– Achar que um milhão de reais é dinheiro.
– E não é?
– Para mim, um pobre coitado, é. Para alguém que sabe usá-lo
como capital para gerar bons negócios, é. Para uma madame
gastadeira e seu amante aproveitador, não. Quanto você acha que
custa um apartamento em Miami?
– Tá me dizendo que ela continua pobre e não sabe disso?
– Sim. E dentro de alguns meses saberá.
– Aí estará sem dinheiro, sem marido generoso e sem amante
prestativo.
– Terá sorte ainda, se ele não quiser queimar arquivo só por
garantia. Não tem jeito, linda. De uma forma ou de outra aqui se
paga o que aqui se faz.
– Tá, você me convenceu. Mas ainda continua sendo tudo um
exercício de especulação. - ela se deita junto a mim.
Minha intuição me diz que tô certo. O tempo e as manchetes nos
jornais confirmarão. Pelo menos o cheque tinha fundos. Deu até
para concertar o ar-condicionado do golzinho ( - R$...) e as contas
atrasadas ( - R$ …..) e o aluguel do mês ( - R$ …......). Só
falta comprar as alianças ( -
R$..............................................).
– Ai, ai... - me levanto.
– Ei, querido, que foi? Onde você vai?
– Comprar um caneco.
FIM
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