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Wilson parou um instante em frente ao portal do cemitério, admirando-o. Eis a divisa entre o mundo dos vivos e dos mortos. Não que ultrapassá-lo significasse ir para o outro mundo, mas certamente deixava mais próximo, a ponto de sentir na pele, ou na alma, os que já se foram. E talvez fosse esse contato que atraia os vivos, que o atraia.
Às vezes gostaria que a divisa entre os dois mundos fosse assim tão precisa quanto um portão de cemitério. A princípio pensamos que é assim. Morreu, atravessou o portão. Se isto é o fim para alguns, para outros é apenas o início de uma nova vida, uma vida após a morte. Nesse sentido é que morte significa separação. Mas se do outro lado, de alguma forma, existe vida, então a linha divisória entre os dois mundos talvez não seja realmente tão precisa. Talvez em algum ponto os dois lados se confundam. E, quem sabe, seja neste ponto que às vezes nos perguntamos se estamos mesmo vivos, ou mesmo sentimos a presença forte de alguém que já se foi? Sim, o portão era uma divisa, mas não uma divisa precisa como um marco de fronteira.
Entrou, atravessou o portão. Divisa ou não, o fato é que não se sentia muito bem ali. Olhou em volta, não viu ninguém. E ao mesmo tempo sentia uma multidão em volta. Uma multidão terrivelmente silenciosa. E na verdade, dessa multidão temia ouvir apenas uma voz. Depositou a rosa sobre o túmulo esquecido à sombra daquela árvore no fim do cemitério, mas não soltou-a. Caiu de joelhos e trouxe a rosa de volta ao seu peito. Voltou os olhos à inscrição na lápide:
“Aqui jaz Marília Vera (1935-1969)”
Inscrição curta, como se quem a fizesse não tivesse muito o que dizer. E de fato não tinha. Só o que tinha a lamentar era o passado tão triste, não tanto o dele, mas o dela.
— Como ela está, doutor?
O médico encarou o garoto, um menino ainda. Podia ver em seus olhos a espera de uma esperança, esperança que ele não tinha para dar. Nem mesmo a ilusão de uma esperança era mais possível.
— Lamento, meu jovem. Tudo o que a medicina podia fazer por sua mãe já foi feito. Só lhe resta apelar para a medicina divina e rogar ao...
— Quanto tempo? - interrompeu o garoto.
Era uma pergunta que o médico preferia deixar sem resposta.
— Quanto tempo, doutor? - insistiu.
— Uma semana. Um mês, talvez, não mais.
O rapaz não pareceu chocado. Surpreso, talvez. Já esperava que o tempo fosse pouco, mas não tanto.
Sua tia entrou na sala e ele se despediu do médico.
— Sua mãe quer vê-lo.
— Como? Quer me ver?
— E agora.
Sim, estava surpreso. Não imaginava que a mãe quisesse vê-lo. Nunca quis. Desde criança não fazia questão de tê-lo por perto, nem mesmo lhe chamava pelo nome. Era tratado por “infeliz”. Nunca entendera porquê. Talvez fosse pelo fato de seu pai ser alcoólatra. Toda vez que chegava em casa os dois discutiam, e não poucas vezes ele batia nela, saindo logo depois para beber mais, deixando-a a chorar no sofá. Por vezes ele se aproximou para consolá-la, porém era logo enxotado.
— Sai daqui, moleque. “Tá” querendo me consolar de quê? Você é que é o culpado de tudo isso. Você não tinha era que ter nascido.
E ele saia da sala e ela voltava a chorar. E ele voltava a sala, escondido, e se retraia num canto, observando-a ao longe, e chorando em silêncio para que ela não o percebesse.
Mas será que a culpa era de seu pai? Talvez fosse. No entanto sua mãe dizia que a culpa era dele, ou melhor, era ele, o moleque. E um dia ele teve certeza disso.
Fizera na escola um retrato à mão de sua mãe (na verdade copiara um, cobrindo-o com papel fino) e o emoldurara com palitos de picolé conforme a arte que a professora lhe ensinara. Era o presente para o dia das mães da 3ª série. E o seu, em especial, a professora dissera que ficara muito bom.
— Pena sua mãe não ter vindo à homenagem.
— Ela “tá” muito ocupada, tia.
Chegou em casa entusiasmado. Queria mostrar logo para a mãe sua obra-de-arte.
— O que é isso? - disse ela com rispidez.
— Abra.
Ela abriu sem muito cuidado. Leu o bilhete: “Feliz dia das mães, mamãe.” Pegou o quadro e olhou-o atentamente. Por um instante ele pensou ter visto em seus olhos uma comoção; mas como se despertada de um transe, ela logo lhe disse:
— É, moleque, eu sempre lhe disse que seria um João Ninguém da vida como seu pai, e estava certa. Você não sabe nem ao menos ser prático. Se queria me dar um presente, que fosse pelo menos algo que prestasse. Não espera que eu pendure isto na sala, não é?
Ele ficou parado por um instante, surpreso, sem saber o que fazer, olhando para aquela figura materna. Sufocou um soluço, correu para o quarto, trancou-se, pulou na cama e chorou a não poder mais.
Não fizera um trabalho bom, sua mãe não gostara. A professora mentira. Seu trabalho não ficara muito bom. Os de seus colegas sim. Cada uma das mães que abria o presente dava um abraço e beijos no filho. Não ganhara abraço. Não ganhara beijos. Era apenas um ninguém.
— Entre, moleque. - disse-lhe a mãe vendo-o parado à entrada do quarto. — E feche a porta. Preciso ter uma conversa séria contigo.
Ele trancou a porta e aproximou-se do leito da mãe.
— Não me venha com esse olhar de piedade. Se estou aqui, você é o culpado.
Não replicou. Sempre fora o culpado.
Sua mãe o olhava com firmeza, séria, sem ódio, sem amor.
— Estou perto da morte.
— Que isso...
— Cala-se! Não me obrigue a gritar, que já não posso. Apenas ouça o que tenho a lhe dizer.
“Você já não é mais um garotinho. Já passou dos quinze, tem idade suficiente para compreender tudo o que vou lhe dizer. Já sinto a morte me chamando, mas antes de ir quero que saiba porquê você é o culpado desta vida miserável que levei, para que depois que eu partir não se julgue inocente e que sua própria consciência seja sua acusadora até que possa pagar por tudo, aqui ou lá no inferno.
“Pegue meu álbum de fotos aí na gaveta. São fotos antigas, de quando eu era solteira. - ele pegou o álbum e lhe entregou. Ela procurou por algumas fotos e lhe mostrou. — Está vendo? Esta sou eu quando jovem. Tinha dezessete anos na época. Está vendo como eu era bonita? Na faculdade sempre fui a mais cobiçada e a mais cantada das garotas. Poderia ter namorado quantos rapazes quisesse, e cheguei mesmo a sair escondido com alguns. Contudo eu não era tola. Não queria me envolver demais com nenhum deles. Percebi logo que tinha uma grande arma nas mãos para vencer na vida: minha beleza, meu corpo. E pretendia usá-la da melhor forma possível.
“Meu pai sempre foi muito católico, e me vigiava de dia e de noite. Era difícil escapar de seu cerco. Não me deixava sair com nenhum rapaz. Dizia que uma mulher de respeito não devia sair com qualquer um. E afastava de mim todos os pretendentes. Na verdade o que ele queria era arranjar-me um bom casamento. Um bom casamento no sentido financeiro. Como este também era o meu objetivo, me fiz de boa menina.
“Um dia ele anunciou que marcara um jantar com Henrique, o filho do dono da indústria onde ele trabalhava, a fim de me apresentar a ele, a pedido do próprio, segundo disse. Na verdade a gente já se conhecia de vista. Ele era um rapaz simpático, trabalhador (administrava a empresa do pai), e até que bonitinho. Porém não era o tipo de homem que fascinava as mulheres. No entanto satisfazia meu principal objetivo: subir na vida. E certo do meu interesse pelo rapaz, e deste por mim, papai incentivou ao máximo o nosso namoro, o que por fim acabou acontecendo. Devo dizer que ele sabia agradar bem uma mulher. Me dava presentes caros: jóias, relógios, vestidos, sapatos, etc. Me levou para conhecer países estrangeiros, lugares que as outras garotas só conheciam em filmes. De fato eu tinha tirado a sorte grande, conseguido um excelente partido. Mas ele não era perfeito. Faltava nele certa masculinidade, certa ousadia. Só se limitava a beijos e abraços, sem buscar nada mais íntimo. A princípio pensei ser porque me achava uma garota séria, de princípios morais firmes. E eu não queria me arriscar a fazer insinuações em contrário. Com o tempo percebi que esse era mesmo o jeito dele e que não se atreveria a nada até depois do casamento.
“Na faculdade minhas colegas morriam de inveja de mim; mas eu, no íntimo, pelo menos num ponto tinha inveja delas: todas tinham namorados másculos, rapazes ousados, que tinham fome de viver, de curtir a vida, de explorar um corpo feminino. Quase todos eram meros empregados, gente destinada a não ter nada na vida. Por que a vida é assim? Porque a uns concede vigor físico e sexual e lhes deixa faltar o dinheiro, e a outros concede o dinheiro mas deixa faltar o vigor sexual? Por que a natureza cisma em não criar um ser perfeito?
“Bem, o fato é que passei, consciente ou inconscientemente, a observar mais os físicos dos rapazes e sei que muitos daqueles vigorosos me desejavam. Mas sair com um deles era me arriscar a perder minha mina de ouro. Não, eu não era doida a esse ponto. Bem, pelo menos pensei que não fosse.
“Certo dia eu estava lanchando na cantina da faculdade quando um rapaz se aproximou de minha mesa e perguntou se podia sentar. Já o conhecia de vista. Era um dos operários que trabalhavam na reforma de uma ala da faculdade. E como bom operário que era tinha o físico bem atraente. Se apresentou: João Nicolas. Sim, é esse o mesmo João Ninguém que você conhece como seu pai. Confesso que temi ser vista por uma de minhas amigas. Imagine a fofoca que fariam! Procurei ser discreta, mas por fim acabamos marcando um encontro. Não entrarei em detalhes sobre esse encontro, basta dizer que terminou num motel.
“Me dê um copo de água que já estou com a boca seca de tanto falar.
Wilson pegou o jarro de água e o copo que sua tia deixara sobre a cômoda e serviu sua mãe.
Era estranho ouvir aquela narrativa dela. Estava surpreso, sem dúvida. Sempre imaginara que sua mãe fosse uma mulher integra, apenas aborrecida com a vida. Nunca a imaginara tendo casos as escondidas. Está certo que fora com seu pai, mas isso não muda o ato de traição. Já estava até adivinhando do que era acusado. Já podia predizer mais ou menos o final da história. Contudo, o que o deixava ainda mais surpreso era o modo como sua mãe narrava a história. Falava quase tudo num fôlego só, como se quisesse por para fora algo que a estava sufocando por muito tempo.
Ela lhe devolveu o copo e prosseguiu na narrativa.
— Continuando... Depois desse encontro marcamos outro, e depois deste outro, e outro. Sim, nos tornamos amantes, num caso que durou dois anos. Nunca ninguém desconfiou de nada. Talvez tenha sido sorte, pois por mais esperta que eu fosse não conseguiria enganar tanta gente por tanto tempo. Mas fiz por onde merecer essa sorte. Tomei todos os cuidados possíveis, e o maior deles foi não engravidar. Difícil foi convencer seu pai a colaborar. Depois desses dois anos fiquei noiva de Henrique, mantendo ainda seu pai como amante. E faltando dois meses para o casamento comecei a desconfiar que estava grávida. Fiz o exame e deu positivo. Sim, era você, seu desgraçado. Mais de dois anos de transas com seu pai e você tinha que invadir minha vida justo às vésperas do meu casamento. Não podia ter esperado pelo menos mais uns seis meses? E pior que não poderia alegar que o filho era de Henrique. Aquele pamonha nunca se deitou comigo.
“Corri a buscar a única ajuda que poderia obter: seu pai. Creio que ele ficou mais surpreso que eu. Depois de passar o choque do impacto e tentar me culpar, me chamando de descuidada e outras coisas, pediu um tempo para pensar no que fazer. O pior é que não tínhamos muito tempo. Dois dias depois ele me procurou. Achara a solução. Conseguira dinheiro suficiente para pagar um aborto.
“ — Aborto?! - gritei
“ — Sim. Tem alguma solução melhor?
“Não, eu não tinha nenhuma solução melhor. Marcamos o dia e a hora. Não foi fácil arrumar uma desculpa para sair naquele dia, mas enfim consegui. Aonde seu pai me levou eu não sei. Só sei que era um lugar bem afastado de minha casa. O consultório era clandestino. O aborto, você deve saber, é considerado um crime. Eu estava nervosíssima. E se alguma coisa desse errado? Se desse alguma complicação e eu fosse parar no hospital? E pior é que eu não tinha muita certeza se queria fazer aquilo.
“A mulher que estava ao meu lado entrou, e a próxima seria eu. Isso me deixou ainda mais nervosa. Procurei me acalmar. Pensava que aquela era a única solução, caso contrário seria uma Maria Ninguém pelo resto da vida, destinada a seguir seu pai.
“Uma senhora me avisou que estava na hora. Me deitaram num cama, abriram minhas pernas e as puseram sobre apoios. Alguém me dizia para me acalmar que tudo daria certo, não sei quem. Não era seu pai. Nem sabia onde ele estava.
“De repente um alvoroço. Num piscar de olhos me vi a só na sala. Gritei desesperada. Chamei pelo seu pai, pelos médicos e nada. Já ia me levantar quando uma policial me deteve e pediu para me acalmar. Explicou que tinham recebido uma denúncia anônima sobre aquela clínica clandestina e após uma apuração resolveram invadir o local. Pouco me importava o que acontecia à clínica, mas tinha que ser justo naquele dia e naquela hora? Só podia ser você mesmo, maldito, que queria nascer de qualquer jeito.
“Fomos parar todos na delegacia. Mais tarde chegou meu pai e Henrique, ambos desesperados. Creio que o delegado já lhes tinha contado tudo, ou seja, que eu estava grávida e que pretendia fazer um aborto. Não vou nem repetir as palavras que tive de ouvir de meu pai e de Henrique. Para resumir basta dizer que o noivado foi desfeito, e com ele minhas ambições. Mesmo assim Henrique ainda usou de sua influência para me livrar de um processo. O pior é que tive de me casar as pressas com seu pai e obrigada a te parir de qualquer jeito. Te juro, por tudo que é sagrado, que de início tentei te amar com a um filho realmente. Porém, não sei porquê, só conseguia lhe ter ódio, um ódio que nem o tempo apagou. E talvez nem a morte.
“Era só o que tinha para lhe dizer. Agora saia, quero ficar a só.
Wilson fez menção de dizer alguma coisa, mas viu que sua mãe não lhe daria ouvidos. Saiu, foi para o seu quarto e chorou o quanto pode.
Então era daquilo que era culpado? De ter simplesmente nascido?
Duas semanas depois sua mãe faleceu, e só então pode finalmente abraçá-la.
Novamente colocou a rosa sobre o túmulo. Queria murmurar algumas palavras, mas não sabia quais. Ergueu-se. Já era tarde, um vento leve trazia de longe o frio e anunciava a chuva.
— Adeus, mãe. Um dia talvez a senhora me perdoe pela culpa que não tive.
Caminhou lentamente em direção à saída. Não olhou para trás. Não olhou para o vento que erguia as folhagens. Não olhou para a lápide. Não olhou para o túmulo. Não olhou para a rosa ao chão.