quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Apenas um Palhaço

            Ele entrou no carro, jogou a sacola no banco do carona, ligou o motor e partiu a toda.  Só mais à frente é que retirou a máscara de Pierrô.
            — Desculpe usar seu nome para isso, meu velho. - disse para a máscara.  —  Mas você me entende, não é mesmo?  Você é o único que me entende.

           
            — Respeitável público!  Com vocês: o palhaço! - dizia uma voz anônima no sistema de som.
            As luzes do circo se apagavam.  Apenas um círculo de luz se projetava na entrada dos artistas.  E de lá vinha ele, o palhaço, de cara pintada, de roupa colorida, correndo, tropeçando, perseguindo o macaquinho que lhe fazia caretas.  Apresentava seu show, improvisava, brincava com a platéia.  Todos riam, todos aplaudiam.  E as crianças...  Principalmente as crianças.  Essas riam a valer.  E era para elas que ele fazia seu show.  Eram para elas as suas piadas, seus gestos engraçados, suas risadas.  Elas riam.  Riam mais do jeito dele do que propriamente de suas piadas.  E ele as pegava no colo.  E ele as beijava.  E elas riam.  Riam e beijavam o nariz vermelho do palhaço.
            Seu show era sempre o primeiro das apresentações.  Quando terminava subia uma pequena escada e ficava numa pequena plataforma acima da entrada dos artistas, de frente para o público.  Ali ele tomava o microfone e fazia as apresentações dos artistas, sempre de uma maneira criativa que provocava o riso da platéia.
            Amava seu serviço.  Amava seu circo.  Sim, seu circo.  Fora de seu pai, como fora de seu avô.  Agora era seu. 
 Sempre amara o circo.  Mas nunca gostara de fazer o papel de palhaço. Seu pai o treinara para ser palhaço, mas ele preferia ser trapezista. Não queria que as pessoas rissem dele.  Queria era ser admirado por elas.  Fazer coisas que as deixassem de queixo caído.  Fora trapezista.  Seu malabarismo tirava um oh! da platéia que suava para ele muito melhor que os aplausos.  Só fazia o papel de palhaço quando era mesmo necessário.  Que graça tinha em fazer as pessoas rirem?  Qualquer bobo podia ser um palhaço.  Mas quantos podiam ser trapezistas?
Seu pai era um palhaço.  Não entendia porquê ele gostava de ser o palhaço.  Todos riam dele e ele gostava disso.  E não era apenas devido ao fato de sentir que estava fazendo bem seu trabalho.  Era algo que ia além disso.  Não sabia o quê?  Quando perguntava ao seu pai, ele dizia que era preciso ser um palhaço, ter alma de palhaço, para compreender o que ele sentia.  As palavras não poderiam expressar isso, e seu filho não poderia compreender, pois não amava ser um palhaço.  Ele via nos olhos do pai uma certa tristeza quando falava nisso.  Talvez essa tristeza fosse de saber que seu filho preferia ser trapezista e não palhaço.  Mas um dia ele soube que o motivo não era exatamente este. 
— Você tem raiva de eu não querer ser palhaço, não é? - disse num dia em que discutiam mudanças para o número do trapézio.  Seu pai não aceitava certas inovações.
— Não é isso, meu filho.  Bem que eu gostaria que você fosse um palhaço.  No entanto você não compreende o que é ser um palhaço.  E enquanto não compreender isso não será um bom palhaço. 
— Eu gosto é de ser trapezista.
— Gostaria que isso fosse verdade.
Ele olhou seu pai, espantado.
— Mas é verdade.
— Não, você não ama ser trapezista.  E pior:  você não ama o circo, nem o público.  O que você ama são os aplausos.  O que você ama é a admiração do público. 
— E o que há de mau nisso?  O senhor também gosta de ser aplaudido. 
— Sim, é verdade.  O aplauso, para mim, é um reconhecimento do serviço bem feito.
— Para mim também.
— Nem tanto.  Para você o aplauso é sua aclamação.  Para mim o aplauso é conseqüência do meu trabalho.  Para você é o objetivo.
Sim, era verdade.  Para ele o que importava era o aplauso.  Por isso via tristeza nos olhos de seu pai.
— Com vocês:  os irmãos Dostoievski! - anunciou.
No picadeiro entraram seis jovens com roupas brilhantes sob os holofotes.  Agradeceram os aplausos e subiram para o trapézio. 
O nome pomposo não era real.  Era apenas um nome artístico inspirado no nome de um escritor lá pelos lados da Rússia.  Os circos de Moscou eram famosos.  Por isso um nome que lembrasse a Rússia concedia mais respeito ao jovem grupo de artistas.
O palhaço olhou para o alto e viu as acrobacias dos jovens.  Ouviu, com satisfação o oh! e os aplausos da multidão.  De certa forma aqueles aplausos também eram para ele, que ensinou os segredos da arte àqueles jovens.
Seu pai se fora cedo.  E antes de morrer lhe disse:
— O circo agora é seu, meu filho.  Ame-o .
Seu pai nem precisava lhe ordenar aquilo.  Ele amava o circo, ao seu jeito, diferente do jeito de seu pai amar, mas amava.  Afinal era seu mundo.  Ali fora criado.  Ali se casou, com uma moça de outro circo, que também era trapezista.  Fizeram muitos números juntos.  Correram mundo.   E das acrobacias juntos nasceu um pequeno trapezista.  Ela teve que deixar os trapézios por algum tempo a fim de se dedicar ao filho.  Mas foi por pouco tempo.  Não agüentou ficar longe dos trapézios, do olhar espantado da multidão e dos aplausos.  Sim, ela também gostava dos aplausos (qual artista que não gosta?).  No entanto gostava da mesma maneira que seu sogro.  Os aplausos eram sua recompensa.  Era o público lhe dizendo que seu trabalho fora bem feito.  E ficava feliz com isso.  Sentia que estava fazendo alguma coisa na vida.  Se sentia realizada. 
Ele sabia que sua esposa sentia isso.  Ficava feliz por ela está feliz.  Contudo não era assim com ele.  Só com os aplausos é que sentia que era alguém.  Era só ali no alto que as pessoas o reconheciam, o admiravam, o invejavam.   Em terra ele era apenas mais um, quanto muito o dono do circo.  Talvez por isso quisesse que seu filho também fosse um trapezista.  Queria que seu filho fosse igualmente, ou mais, admirado pelo público, aplaudido, invejado.  Queria que seu filho fosse alguém.  E no seu circo seu filho seria, sim, um alguém.  Seria o astro maior que brilharia no alto do picadeiro.  Mas o destino nem sempre segue os planos que traçamos.
Seu filho, ainda novo, com menos de dois anos, adoeceu.  E com ele todo o circo.  Ia piorando a cada a olhos vistos.  Quase não saia do colo da mãe.  E o seu pai, quando não estava no picadeiro, estava ali, ao lado de seu filho.
Sim, por mais que lhe doesse, tinha que deixar o filho e ir para o picadeiro, pois o maior espetáculo da Terra não pode parar, nunca.  Assim seu pai lhe ensinara.  Assim pretendia ensinar ao seu filho.  Quando sarasse e crescesse, iria saber que seu pai não deixara o circo parar.  E que fizera isso não porque amava mais ao circo que ao filho, mas porque queria que seu filho tivesse um circo para herdar.   O circo não pode parar porque é a vida de seus artistas.


Olhou pelo retrovisor.  Ninguém o seguia.  Nenhuma patrulha por perto.
Talvez fosse melhor trocar o carro.  Alguém pode ter anotado sua placa.  Mas onde iria conseguir um outro carro?  Devia ter pensado nisso antes e deixado um outro veículo à espera em algum outro canto.  Agora era tarde.  Iria naquele mesmo.
Sinal vermelho.  Sempre vermelho quando se está com pressa.
O motorista do carro à direita olhou para ele.  Aquela criança na calçada também.   Por quê todo mundo estava começando a olhar para ele?
Verde.  Seguiu em frente.  Acelerou.  Estava com pressa.  Todo mundo olhava para ele. 
— Calma, meu caro. – disse para si mesmo. — Você está nervoso.  Relaxe.  Não tem ninguém te perseguindo.   A culpa não foi sua.  Eles que te obrigaram.

— Seu filho morreu. - lhe disseram quando estava prestes a entrar em cena. 
Seus olhos umedeceram.  Seu filho.  Seu querido filho.
Enxugou as lágrimas.  Retocou rapidamente a maquiagem e entrou em cena.  Sim, o maior espetáculo da terra  não podia parar.   Com toda a força que tinha no coração conteve as lágrimas e mesmo com as mãos trêmulas conseguiu fazer seu show.   Mas dessa vez os aplausos não soaram como antes.  Sempre haveria um lugar vago na platéia.  Nunca receberia o aplauso do seu filho.  Nunca seria o seu herói.  Nunca ensinaria a ele os seus segredos. 
Desceu do trapézio.  Agradeceu novamente a platéia.  E assim que se viu nos bastidores, longe do olhar da platéia, deixou-se cair num canto e chorar em alta voz.  
           

— Droga.  Não acredito que também esqueci de encher o tanque.
A poucos metros encontrou um posto.  Entrou numa pequena fila. 
O frentista já atendia o carro da frente, no entanto olhava de vez em quando para sua direção.  Um outro carro parou atrás.
Por que todo o mundo olhava para ele?   Não podiam saber do que fizera.  Será que já saíra no rádio e na TV.  Talvez tivessem a descrição do carro.
Um outro frentista ao telefone olhou para ele.  Parecia agitado.  Desligou, olhou novamente para ele e seguiu em sua direção com um leve sorriso.
Virou o volante. 
Ele já sabia.  Todos já sabiam. 
Acelerou e arrancou em disparada.


Mais uma vez fora necessário substituir o palhaço.  Já não se importava.  Não era mais trapezista.  Era apenas o dono do circo. 
Olhou-se no espelho, terminando os retoques da maquiagem. 
Como poderia ser um palhaço?  Não tinha alegria para transmitir.  Não conseguia sorrir com sinceridade.  Se o público ria, ria das piadas, não do palhaço.  Não, não era um palhaço.  Era apenas um homem tolo numa fantasia tola.
Entrou em cena com os seus assistentes.  Fez os mesmos esquetes de sempre, contou as mesmas piadas.  Todos riam. Todos...  Não.  Naquele dia nem todos riram.
Ele observou um grupo de cerca de quinze crianças.  Estranhou um grupo grande assim de crianças juntas.  Deviam ser alguma turma da escola local. No entanto as idades pareciam variar muito para serem de uma mesma turma.  Porém, o que mais chamou a atenção dele é que uma das crianças não ria.  Estava séria.   Parecia não achar graça de nada.  As outras crianças no circo riam muito, ao lado dos pais, dos irmãos ou dos amigos.
Aproximou-se daquele estranho grupo.  Dirigiu às crianças algumas piadas.  Algumas riram, mas aquela criança não.  Ele perguntou a ela de que escola eram.
— De nenhuma escola. - respondeu uma senhora que acompanhava as crianças.  — São do Orfanato Santa Luz. 
— Orfanato? - o palhaço olhou para aquelas crianças.  Não tinha pais.  Não tinham lar. No entanto riam.  —  E por que esta aqui não ri?
— Ela é a mais recente no orfanato.  Perdeu os pais a poucos dias.  Não tem motivos para sorrir.
Ele olhou para aquela criança. Deviria ter uns três anos.  Sentiu ternura por ela.  Era um menininho.  Se seu filho estivesse vivo estaria com aquela idade. 
Não, aquela senhora estava errada.  Aquela criança tinha um motivo para sorrir:  estava viva.  Talvez a tristeza ainda não lhe estivesse dando espaço para a alegria.
— Quer vir com o palhaço.
Ele o pegou no colo.  O menininho ficou olhando para ele. 
— Quer ser uma palhacinho?  - tirou seu nariz de bola vermelha e colocou no narizinho da criança.  — Pronto, agora você é um palhaço de verdade.
A criança sorriu.  E ele também.
Levou o menininho para o centro do picadeiro e brincou com ele.  Todos riram, e a criança também.
Ao final da apresentação devolveu o menino à sua turminha, que, aliás, ficou o nariz do palhaço.
Nos bastidores ele se olhou no espelho e sorriu. 
Não, não era um homem tolo numa fantasia tola.  Era um palhaço.  Sim, estava se sentindo um palhaço!  E estava gostando disso! 
Entrara triste no picadeiro e saíra feliz.  Talvez o palhaço não tenha que ser feliz para transmitir alegria.  Talvez o palhaço tenha que transmitir alegria para ser feliz. 

O carro parou.  A gasolina acabara.  Felizmente o circo não estava muito longe.  Poderia seguir a pé dali.  Pegou a sacola, a máscara de Pierrô e começou a caminhada.

— Tenho que ir.  - disse-lhe a esposa um dia.
— Por quê?
Ela olhou em volta do picadeiro.  Estavam os dois sozinhos no circo.
— Não posso mais continuar aqui.  Está muito difícil.
— Olha, eu sei que o circo não está passando por bons momentos.  A temporada está ruim.  Mas vai melhorar, acredite.
— Querido!, não se trata disso.  Cresci no circo, casei-me no circo.  Eu amo este picadeiro.  Mas...   -  olhou para o alto, para o trapézio -  desde que nosso filhinho se foi...  Eu não consigo.  Eu não consigo sentir mais alegria aqui dentro.  Os espetáculos me fazem chorar.  Preciso me afastar um pouco do circo ou morrerei de tristeza.  Você compreende?
Sim, ele compreendia.  Se não tivesse redescoberto a alegria sob a máscara de palhaço estaria do mesmo jeito.  Só que ele não poderia abandonar o circo.  Para ela o circo trazia tristeza porquê lembrava o filho.  Para ele era a única alegria que lhe sobrara, pois conseguia ver seu filho sorrir na platéia. 
Ele a abraçou.  Ela sabia que ele não a acompanharia.  Mas tinha que ser assim.  São muito estranhos os rumos que a vida toma.
Aquela separação lhe doeu muito.  Em menos de um ano perdera as duas pessoas que mais amava.  Uma a morte levara.  A outra, a vida.
Mas o espetáculo tem que continuar, embora houvesse cada vez menos platéia para assisti-lo.  Talvez o circo já não seja mais o maior espetáculo da Terra.  Mesmo assim, fizesse sol ou chuva (dentro ou fora de seu coração), ele estaria numa nova cidade, batendo suas estacas, armando a lona e convidando o povo à alegria.
Talvez os tempos não fossem de alegria.  Seus artistas, pouco a pouco, estavam migrando para companhias maiores, ou mesmo deixando a vida de circo. 
Suas finanças estavam apertadas.  Se não conseguisse um empréstimo no banco teria que vender algumas coisas do circo para continuar dando seus espetáculos.  Fora aos bancos diversas vezes, mas não conseguiu nenhum empréstimo. 
Os poucos artistas que ainda tinha não tiveram escolha senão abandonar o circo.
Sim, o circo estava morrendo.  E com ele aquele palhaço. 

— Ei, amizade!  O quê você tá levando aí?
Ele olhou para o lado.  Era um bando de jovens. 
— Nada que interesse a vocês.  Com licença.
— E aí! Qual é, chefia?  A gente só quer dá uma olhada na sacola.  Que que há?
— Estou com pressa.
Um deles cercou sua frente.
— Aí, cê tá muito estranho.  Qual é a tua?
— Me deixem.  Tenho que voltar para o circo.
— Para o circo, é? Legal!  Que que tu é? O palhaço?
Sim, era o palhaço.  E daí?  Tentou seguir em frente mais foi empurrado e caiu no chão.  A sacola se abriu e um maço de notas  caiu.
— Ora, ora.  Vejam só.  O palhaço tá cheio da grana!  Não é muito seguro andar por aí com essa grana toda, sabia?
O rapaz abaixou-se, pegou o maço de notas. O palhaço lhe segurou o braço.
— Deixa isso! É meu.
Foi chutado.  Tentaram arrancar a sacola de suas mãos, mas ele resistia.  O  chutaram mais ainda.  E continuaram chutando e dando socos.

Parou o carro.  Colocou a máscara de Pierrô. Entrou correndo no banco. Sacou a arma.
— É... É um assalto.

A chuva o despertou.
O que acontecera, mesmo?
Os jovens...
A sacola!  Onde estava a sacola?
Olhou em volta. Tateou.  Nada.
Levaram a sacola.  Todo aquele sacrifício em vão.  Talvez fosse castigo.  Mas ele só queria salvar seu circo.
Encontrou a máscara de Pierrô perto dele.  Estava rachada.  O semblante eternamente triste.  Talvez mais agora do que nunca.  Pegou-a e ficou sentado no chão olhando para ela, sem se importar muito com as dores.
— Desculpe.  Foi um erro tolo, eu sei.  Mas o que eu poderia fazer?
Ergueu os olhos.  O circo estava perto.  Levantou-se com dificuldade e continuou a caminhar.

— Ponha o dinheiro na sacola!  Depressa, vamos!  Isso, isso.  Pronto, já basta.  Tchau!

Entrou no circo. 
Parecia chover tanto dentro dele quanto fora.  Ergueu os olhos para o alto.  Sim, a lona estava precisando de reformas.  Mas isso já não importava.
As dores estavam ficando mais fortes.
Foi para o centro o picadeiro.  Olhou para a arquibancada.  Imaginou-a cheia.  Tentou sorrir.  Colocou a máscara.  Ficou com os olhos fitos na platéia. 
Deixou-se cair ajoelhado, vencido pela exaustão e dor.
Por quê?  Por que as coisas na vida tinham que ser assim? Por que ninguém dava mais valor ao seu circo? O que fizera para merecer tanto sofrimento?  Só queria ser feliz e levar alegria aos outros.  E, pelos Céus, por mais infeliz que fosse estava conseguindo levar alegria aos outros.  Por que então tudo acabou? 
Talvez não haja mais lugar no mundo moderno para a alegria.  Os homens sufocam seus problemas nas cervejas, procuram consolo nos braços de mulheres que não amam e fogem da verdadeira alegria do espírito.  Parece que ser feliz fora do padrão político-social-esconômico é crime.  Talvez tenha sido esse crime o que  cometera.  A sociedade talvez não compreendesse o seu jeito de ser feliz.  Não entendiam a importância de sua profissão, como ele antes também não compreendia.  Para todos ele era apenas um palhaço.
Ergueu os olhos para o alto da lona.
E era só o que pedia para continuar sendo.
Apenas um palhaço.
Apenas... um palhaço.


Nenhum comentário:

Postar um comentário