quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Escolha


 Vamos, querido, empurre. - disse ela sentando-se no balanço como se fosse uma criança.
Empurrei-a. Ela riu. – E vai se acostumando que logo terá uma menininha sentada aqui.
— Pai! Empurra.
Sai do meu devaneio. Ela é tão parecida com a mãe...
De repente ela salta e corre ao encontro das coleguinhas que a chamam do portão.
Dez anos...

— Calma, querida. Vai dar tudo certo.
Seguro firme a mão dela enquanto procuro acompanhar a maca.
— O senhor vai ter que esperar aqui. - disse uma enfermeira me retendo do lado de fora de uma porta.
Nossas mãos foram forçadas a se separarem e por um breve instante ela me dirigiu um olhar forçando um sorriso.
Uma sensação de adeus me apertou o peito.

– Positivo.
Indescritível a reação de alegria dela ao ver o resultado do exame.
Finalmente o filhinho tão desejado viria.  E ninguém no mundo parecia desejar mais um filho do que ela.
            Depois das lágrimas, planos para o quarto, com opções para menino ou menina.
            Seis anos tentando e nada.  Tratamentos e mais tratamentos e nada. 
            Trinta e cinco, trinta e seis, trinta e sete...  Aos quarenta ela desistiu.  Mas continuamos nossas vidas, tentando e sendo felizes.
            Quarenta e um.  Positivo.  Assim... do nada!
              Eu nunca parei de orar. – confessou minha sogra.    Tinha certeza que o Senhor me ouviria!
            As tias, muito católicas, rezaram para tudo quanto é santo, literalmente.  Agora cada uma já planejava o cumprimento das promessas feitas.

            Minha mãe chegou ao hospital trazendo minha sogra.  Esta se sentou num canto afastado, abraçou forte sua Bíblia e ficou orando em meio ao choro.  Ela esperava um milagre.  Mais um.

              Alto risco? – repeti as últimas palavras do médico. 
            Ele explicou alguma coisa sobre idade, útero fraco e outros fatores que parecem ter se reunido num complô contra nosso sonho de paternidade.
            Ficamos meio que em choque durante alguns minutos.  Minha esposa ficou de cabeça baixa, olhando para o vazio, deixando as lágrimas rolarem sem falar nada.
              Quais as chances? – perguntei.
              De se ter uma gravidez normal e um parto bem sucedido? Mesmo com todos os cuidados não são boas.  Mas é difícil falar em porcentagem.  A gravidez ainda está no início.  À medida que se passarem as semanas, vamos avaliando e verificando os níveis de risco.  A questão é: que nível de riscos vocês estão dispostos a correr?  Devem estar preparados para fazer uma escolha se  necessária.
              “Escolha”?
              Sim.  Em situação de risco de morte para a gestante,  a lei permite o aborto.
              Não. – Esta negação saiu firme e sonora dos lábios nada trêmulos de minha esposa.
            Houve alguns instantes de silêncio.
              Se quiser posso recomendar o acompanhamento de uma psicólo...
              Não.
            Ela se ergueu.  Senti a resolução dela. 
             Terei meu filho.
            Naquele dia fiquei observando-a em seu sono, após longas horas deitada em silêncio, sem querer dividir comigo seus pensamentos.
            Acho que dentro dela estava começando uma luta.  O instinto materno versus o de auto-preservação.
            Confesso que dentro de mim o instinto paterno não falava tão forte.  Sim, eu queria muito ter um filho.  Mas ao custo da vida de minha esposa?   Jamais.  Eu a amava muito.  E perde-la...
            E se o filho nascesse e ela morresse?  Como eu iria criar a criança sozinho?  Não, eu não teria forças.  Era melhor deixar as coisas como estavam.  Apenas eu e ela, sozinhos e juntos, vivendo esta vida que não está ruim.  Talvez voltar a considerar uma adoção.  Tantos casais o fazem.  E criança precisando não falta.
            Se dependesse de mim, ela abortaria.  Sim, abortaria. 
            Não me entendam mal.  Sou contra o aborto.  Não vou entrar no mérito da questão de quando a vida começa.  Mas uma vez iniciado o processo da vida, interrompe-la não deixa de ser uma agressão a ela.  No entanto, se tivesse que escolher entre uma pessoa presente no meu dia-a-dia, que compartilhava comigo as dores e as alegrias, minha cara-metade e uma expectativa de um ser que eu não conhecia, que nem se podia dizer ao certo se já existia, não tenham dúvidas, minha escolha seria minha esposa.
              Não quero perde-la. – disse-lhe ao tomar-mos nosso café da manhã.
              Não vai. – respondeu-me sem nenhuma convicção na voz.
           

            Quarta semana de gestação.  Hospital.
              Vou deixa-la internada apenas para observação. – disse-me o doutor.
            Mas eu sabia a verdade.  Os riscos estavam aumentando no decorrer das semanas.  E meu desespero também.  No entanto minha esposa permanecia resoluta.
              Aborte. – disse-lhe minha sogra sob o olhar perplexo da filha —  Prefiro perder um neto que ainda não nasceu do que minha filha.
            Minha sogra sempre fora contra o aborto.  Protestante, sempre andava com uma Bíblia e não perdia uma oportunidade de pregar o evangelho à alguém.  O aborto era inadmissível sob quaisquer circunstâncias.   Era um atentado à vida e à vontade do Senhor.
               Não insista com essa criança.  O senhor há de perdoar se...
              Não. – respondeu firmemente minha esposa, virando o rosto para o canto.
            Nossos princípios são tão fortes quanto nossos interesses.
            Minha sogra não disse mais nada.  Segurou a mão da filha com uma mão e com a outra apertou a Bíblia contra o peito.
            Sinceramente não sei se ela orava pela filha ou por ela mesma.

            As semanas seguintes foram divididas entre nossa casa e o hospital.  E a cada internação só aumentava a minha certeza do que iria acontecer.
              Veja, querido.  É uma menina. – disse ela mostrando-me a imagem de nossa filha na tela do ultra-som.
            Ali estava a imagem de um ser vivo, um ser humano, uma filha sendo gerada dentro dela.  Agora era irreversível.  Eu jamais conseguiria convence-la a optar pela própria vida.  E ela ainda me fez jurar que, se o pior acontecesse, eu amaria nossa filha por nós dois.  E que não sentiria rancor por ela nos separar.

            Presente.  Este foi minha sogra quem trouxe.  Ela praticamente só vinha ver a neta no aniversário.  Esforçava-se no sorriso, no abraço e nas carícias.  Procurava não olhar a neta diretamente nos olhos.  E antes que as velinhas fossem acesas, ela saía.  Minha filha nunca perguntou o porquê.  Ainda assim mantinha uma foto da avó com sua mãe na cabeceira da cama.

            Entramos no quarto de minha querida após o parto.  Eu, minha mãe e minha sogra.  Todos com esses roupões de hospital, luvas e máscaras cobrindo o nariz e boca.
            Minha querida parecia bem fraca.  Mas era só alegria e lágrimas com o pequeno embrulho nos braços contendo um minúsculo ser.  Ela olhou para mim como se dissesse “conseguimos”.  Ergueu uma das mãos e retirou-me a máscara.  Tentei sorrir.
            — Cuide bem dela... por nós dois.
            Levei um baque.
            Terei minhas inúteis luvas, acariciei-lhe o rosto e me inclinei para beijar-lhe e murmurar:
              Não sem você, minha querida.  Não sem você.
            Ouvi o som de um dos instrumentos se tornar agudo e contínuo.
            Fomos rapidamente afastados dela enquanto uma enfermeira retirava a criança e um grupo de médicos iniciava os socorros.
            Minha mãe e eu chorávamos juntos.  Um choro um tanto silencioso, de quem já não tem mais lágrimas para derramar.
            Os médicos finalmente terminaram as tentativas de ressurreição.  Não havia mais jeito.
            Procurei minha sogra em volta.  Só encontrei sua Bíblia sobre uma cadeira.  Não sei por que a peguei.  Não sei por que ainda a guardo comigo.  Não sei por que a mantenho bem à vista sobre a estante da sala.  Não sei por  que minha sogra, tendo-a visto e tocado, não quis me pedi-la de volta.

            Minha filha chamou as coleguinhas e justas correram para dentro de casa.  Eu as segui sem pressa.  Os pais também já tinham chegado e conversavam animadamente na sala.  Ao centro desta estava uma mesa com um lindo bolo em cima.
            Sentei-me a um canto.  Um amigo me trouxe uma cerveja e ficamos observando as crianças se amontoarem ao redor da mesa, enquanto as mulheres tentavam, em vão, organizar tudo.  Acenderam as velinhas do bolo e começaram a cantar o  “parabéns para você”.
              Cinco anos. É...  O tempo passa muito rápido. – disse meu amigo entre dois goles da cerveja.
              Sim.  – respondi secamente com meu copo ainda cheio.
              E aí?  Se pudesse voltar no tempo, vendo sua filha crescida desse jeito agora, abortaria?
            Olhei-o por cima dos óculos que os anos me trouxeram.
            Sim, ali estava minha filha.  Eu seria capaz de levar um tiro por ela.  Talvez fosse até capaz de fazer o que um certo pai fez, matando-se com um tiro para que seus órgãos pudessem ser doados à filha.
            Só que há cinco anos atrás minha filha não era nada, literalmente.  Há cinco anos atrás a mulher mais importante na minha vida era minha esposa.  Então eu não tenho dúvida da minha escolha.  Aborto.
            Mas não foi essa a resposta que dei ao meu “amigo”.
           


Nenhum comentário:

Postar um comentário