sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Rancor


versão em e-pub para ler no seu tablet



Wilson parou um instante em frente ao portal do cemitério, admirando-o.  Eis a divisa entre o mundo dos vivos e dos mortos.  Não que ultrapassá-lo significasse ir para o outro mundo, mas certamente deixava mais próximo, a ponto de sentir na pele, ou na alma, os que já se foram.  E talvez fosse esse contato que atraia os vivos, que o atraia.
 Às vezes gostaria que a divisa entre os dois mundos fosse assim tão precisa quanto um portão de cemitério.   A princípio pensamos que é assim.  Morreu, atravessou o portão.   Se isto é o fim para alguns, para outros é apenas o início de uma nova vida, uma vida após a morte.  Nesse sentido é que morte significa separação.  Mas se do outro lado, de alguma forma, existe vida, então a linha divisória entre os dois mundos talvez não seja realmente tão precisa.  Talvez em algum ponto os dois lados se confundam.  E, quem sabe, seja neste ponto que às vezes nos perguntamos se estamos mesmo vivos, ou mesmo sentimos a presença forte de alguém que já se foi?  Sim, o portão era uma divisa, mas não uma divisa precisa como um marco de fronteira. 
            Entrou, atravessou o portão.  Divisa ou não, o fato é que não se sentia muito bem ali.  Olhou em volta, não viu ninguém.  E ao mesmo tempo sentia uma multidão em volta.  Uma multidão terrivelmente silenciosa.  E na verdade, dessa multidão temia ouvir apenas uma voz.  Depositou a rosa sobre o túmulo esquecido à sombra daquela árvore no fim do cemitério, mas não soltou-a.  Caiu de joelhos e trouxe a rosa de volta ao seu peito.  Voltou os olhos à inscrição na lápide:

             “Aqui jaz  Marília Vera (1935-1969)”

            Inscrição curta, como se quem a fizesse não tivesse muito o que dizer.  E de fato não tinha.  Só o que tinha a lamentar era o passado tão triste, não tanto o dele, mas o dela.

            — Como ela está, doutor?
            O médico encarou o garoto, um menino ainda.  Podia ver em seus olhos a espera de uma esperança, esperança que ele não tinha para dar.  Nem mesmo a ilusão de uma esperança era mais possível.
            — Lamento, meu jovem.  Tudo o que a medicina podia fazer por sua mãe já foi feito.  Só lhe resta apelar para a medicina divina e rogar ao...
            — Quanto tempo?  - interrompeu o garoto.
            Era uma pergunta que o médico preferia deixar sem resposta.
            — Quanto tempo, doutor? - insistiu.
            — Uma semana.  Um mês, talvez, não mais.
            O rapaz não pareceu chocado.  Surpreso, talvez.  Já esperava que o tempo fosse pouco, mas não tanto.
            Sua tia entrou na sala e ele se despediu do médico.
            — Sua mãe quer vê-lo.
            — Como?  Quer me ver?
            — E agora.
            Sim, estava surpreso.  Não imaginava que a mãe quisesse vê-lo.  Nunca quis.  Desde criança não fazia questão de tê-lo por perto, nem mesmo lhe chamava pelo nome.  Era tratado por “infeliz”.  Nunca entendera  porquê.  Talvez fosse pelo fato de seu pai ser alcoólatra.  Toda vez que chegava em casa os dois discutiam, e não poucas vezes ele batia nela, saindo logo depois para beber mais, deixando-a a chorar no sofá.  Por vezes ele se aproximou para consolá-la, porém era logo enxotado.
            — Sai daqui, moleque.  “Tá” querendo me consolar de quê?  Você é que é o culpado de tudo isso.  Você não tinha era que ter nascido.
            E ele saia da sala e ela voltava a chorar.  E ele voltava a sala, escondido, e se retraia num canto, observando-a ao longe, e chorando em silêncio para que ela não o percebesse.
            Mas será que a culpa era de seu pai?  Talvez fosse.  No entanto sua mãe dizia que a culpa era dele, ou melhor, era ele, o moleque.  E um dia ele teve certeza disso.
            Fizera na escola um retrato à mão de sua mãe (na verdade copiara um, cobrindo-o com papel fino) e o emoldurara com palitos de picolé conforme a arte que a professora lhe ensinara.  Era o presente para o dia das mães da 3ª série.  E o seu, em especial, a professora dissera que ficara muito bom.
            — Pena sua mãe não ter vindo à homenagem.
            — Ela “tá” muito ocupada, tia.
            Chegou em casa entusiasmado.  Queria mostrar logo para a mãe sua obra-de-arte.
            — O que é isso? - disse ela com rispidez.
            — Abra.
            Ela abriu sem muito cuidado.  Leu o bilhete: “Feliz dia das mães, mamãe.”  Pegou o quadro e olhou-o atentamente.  Por um instante ele pensou ter visto em seus olhos uma comoção; mas como se despertada de um transe, ela logo lhe disse:
            — É, moleque, eu sempre lhe disse que seria um João Ninguém da vida como seu pai, e estava certa.  Você não sabe nem ao menos ser prático.  Se queria me dar um presente, que fosse pelo menos algo que prestasse.  Não espera que eu pendure isto na sala, não é?
            Ele ficou parado por um instante, surpreso, sem saber o que fazer, olhando para aquela figura materna.  Sufocou um soluço, correu para o quarto, trancou-se, pulou na cama e chorou a não poder mais.
            Não fizera um trabalho bom, sua mãe não gostara.  A professora mentira.  Seu trabalho não ficara muito bom.  Os de seus colegas sim.  Cada uma das mães que abria o presente dava um abraço e beijos no filho.  Não ganhara abraço.  Não ganhara beijos.  Era apenas um ninguém.
            — Entre, moleque. - disse-lhe a mãe vendo-o parado à entrada do quarto.  — E feche a porta.  Preciso ter uma conversa séria contigo.
            Ele trancou a porta e aproximou-se do leito da mãe.
            — Não me  venha com esse olhar de piedade.  Se estou aqui, você é o culpado.
            Não replicou.  Sempre fora o culpado.
            Sua mãe o olhava com firmeza, séria, sem ódio, sem amor.
            — Estou perto da morte.
            — Que isso...
            — Cala-se!  Não me obrigue a gritar, que já não posso.  Apenas ouça o que tenho a lhe dizer.
            “Você já não é mais um garotinho.  Já passou dos quinze, tem idade suficiente para compreender tudo o que vou lhe dizer.  Já sinto a morte me chamando, mas antes de ir quero que saiba porquê você é o culpado desta vida miserável que levei, para que depois que eu partir não se julgue inocente e que sua própria consciência seja sua acusadora até que possa pagar por tudo, aqui ou lá no inferno.
            “Pegue meu álbum de fotos aí na gaveta.  São fotos antigas, de quando eu era solteira. - ele pegou o álbum e lhe entregou.  Ela procurou por algumas fotos e lhe mostrou.  — Está vendo?  Esta sou eu quando jovem.  Tinha dezessete anos na época.  Está vendo como eu era bonita?  Na faculdade sempre fui a mais cobiçada e a mais cantada das garotas.  Poderia ter namorado quantos rapazes quisesse, e cheguei mesmo a sair escondido com alguns.   Contudo eu não era tola.  Não queria me envolver demais com nenhum deles.  Percebi logo que tinha uma grande arma nas mãos para vencer na vida: minha beleza, meu corpo.  E pretendia usá-la da melhor forma possível.
            “Meu pai sempre foi muito católico, e  me vigiava de dia e de noite.  Era difícil escapar de seu cerco.  Não me deixava sair com nenhum rapaz.  Dizia que uma mulher de respeito não devia sair com qualquer um.  E afastava de mim todos os pretendentes.  Na verdade o que ele queria era arranjar-me um bom casamento.  Um bom casamento no sentido financeiro.  Como este também era o meu objetivo, me fiz de boa menina.
            “Um dia ele anunciou que marcara um jantar com Henrique, o filho do dono da indústria onde ele trabalhava, a fim de me apresentar a ele, a pedido do próprio, segundo disse.  Na verdade a gente já se conhecia de vista.  Ele era um rapaz simpático, trabalhador (administrava a empresa do pai), e até que bonitinho.  Porém não era o tipo de homem que fascinava as mulheres.  No entanto satisfazia meu principal objetivo: subir na vida.  E certo do meu interesse pelo rapaz, e deste por mim, papai incentivou ao máximo o nosso namoro, o que por fim acabou acontecendo.  Devo dizer que ele sabia agradar bem uma mulher.  Me dava presentes caros: jóias, relógios, vestidos, sapatos, etc.  Me levou para conhecer países estrangeiros, lugares que as outras garotas só conheciam em filmes.  De fato eu tinha tirado a sorte grande, conseguido um excelente partido.  Mas ele não era perfeito.  Faltava nele certa masculinidade, certa ousadia.  Só se limitava a beijos e abraços, sem buscar nada mais íntimo.  A princípio pensei ser porque me achava uma garota séria, de princípios morais firmes.  E eu não queria me arriscar a fazer insinuações em contrário.  Com o tempo percebi que esse era mesmo o jeito dele e que não se atreveria a nada até depois do casamento.
            “Na faculdade minhas colegas morriam de inveja de mim; mas eu, no íntimo, pelo menos num ponto tinha inveja delas:  todas tinham namorados másculos, rapazes ousados, que tinham fome de viver, de curtir a vida, de explorar um corpo feminino.  Quase todos eram meros empregados, gente destinada a não ter nada na vida.  Por que a vida é assim?  Porque a uns concede vigor físico e sexual e lhes deixa faltar o dinheiro, e a outros concede o dinheiro mas deixa faltar o vigor sexual?  Por que a natureza cisma em não criar um ser perfeito?
            “Bem, o fato é que passei, consciente ou inconscientemente, a observar mais os físicos dos rapazes e sei que muitos daqueles vigorosos me desejavam.  Mas sair com um deles era me arriscar a perder minha mina de ouro. Não, eu não era doida a esse ponto.  Bem, pelo menos pensei que não fosse.
            “Certo dia eu estava lanchando na cantina da faculdade quando um rapaz se aproximou de minha mesa e perguntou se podia sentar.  Já o conhecia de vista.  Era um dos operários que trabalhavam na reforma de uma ala da faculdade.  E como bom operário que era tinha o físico bem atraente.  Se apresentou: João Nicolas.  Sim, é esse o mesmo João Ninguém que você conhece como seu pai.  Confesso que temi ser vista por uma de minhas amigas.  Imagine a fofoca que fariam!  Procurei ser discreta, mas por fim acabamos marcando um encontro.  Não entrarei em detalhes sobre esse encontro, basta dizer que terminou num motel.
            “Me dê um copo de água que já estou com a boca seca de tanto falar.
            Wilson pegou o jarro de água e o copo que sua tia deixara sobre a cômoda e serviu sua mãe.
            Era estranho ouvir aquela narrativa dela. Estava surpreso, sem dúvida.  Sempre imaginara que sua mãe fosse uma mulher integra, apenas aborrecida com a vida. Nunca a imaginara tendo casos as escondidas.  Está certo que fora com seu pai, mas isso não muda o ato de traição.  Já estava até adivinhando do que era acusado.  Já podia predizer mais ou menos o final da história.  Contudo, o que o deixava ainda mais surpreso era o modo como sua mãe narrava a história.  Falava quase tudo num fôlego só, como se quisesse por para fora algo que a estava sufocando por muito tempo.
            Ela lhe devolveu o copo e prosseguiu na narrativa.
            — Continuando... Depois desse encontro marcamos outro, e depois deste outro, e outro.  Sim, nos tornamos amantes, num caso que durou dois anos.  Nunca ninguém desconfiou de nada.  Talvez tenha sido sorte, pois por mais esperta que eu fosse não conseguiria enganar tanta gente por tanto tempo.  Mas fiz por onde merecer essa sorte.  Tomei todos os cuidados possíveis, e o maior deles foi não engravidar.  Difícil foi convencer seu pai a colaborar.  Depois desses dois anos fiquei noiva de Henrique, mantendo ainda seu pai como amante. E faltando dois meses para o casamento comecei a desconfiar que estava grávida.  Fiz o exame e deu positivo.  Sim, era você, seu desgraçado.  Mais de dois anos de transas com seu pai e você tinha que invadir minha vida justo às vésperas do meu casamento. Não podia ter esperado pelo menos mais uns seis meses? E pior que não poderia alegar que o filho era de Henrique.  Aquele pamonha nunca se deitou comigo.
            “Corri a buscar a única ajuda que poderia obter: seu pai.  Creio que ele ficou mais surpreso que eu. Depois de passar o choque do impacto e tentar me culpar, me chamando de descuidada e outras coisas, pediu um tempo para pensar no que fazer.  O pior é que não tínhamos muito tempo. Dois dias depois ele me procurou.  Achara a solução.  Conseguira dinheiro suficiente para pagar um aborto.
            “ — Aborto?! - gritei
            “ — Sim.  Tem alguma solução melhor?
            “Não, eu não tinha nenhuma solução melhor.  Marcamos o dia e a hora.  Não foi fácil arrumar uma desculpa para sair naquele dia, mas enfim consegui.  Aonde seu pai me levou eu não sei.  Só sei que era um lugar bem afastado de minha casa.  O consultório era clandestino.  O aborto, você deve saber, é considerado um crime.  Eu estava nervosíssima.  E se alguma coisa desse errado?  Se desse alguma complicação e eu fosse parar no hospital? E pior é que eu não tinha muita certeza se queria fazer aquilo.
            “A mulher que estava ao meu lado entrou, e a próxima seria eu.  Isso me deixou ainda mais nervosa.  Procurei me acalmar.  Pensava que aquela era a única solução, caso contrário seria uma Maria Ninguém pelo resto da vida, destinada a seguir seu pai.
            “Uma senhora me avisou que estava na hora.  Me deitaram num cama, abriram minhas pernas e as puseram sobre apoios.  Alguém me dizia para me acalmar que tudo daria certo, não sei quem.  Não era seu pai.  Nem sabia onde ele estava.
            “De repente um alvoroço.  Num piscar de olhos me vi a só na sala.  Gritei desesperada.  Chamei pelo seu pai, pelos médicos e nada.  Já ia me levantar quando uma policial me deteve e pediu para me acalmar.  Explicou que tinham recebido uma denúncia anônima sobre aquela clínica clandestina e após uma apuração resolveram invadir o local.  Pouco me importava o que acontecia à clínica, mas tinha que ser justo naquele dia e naquela hora?  Só podia ser você mesmo, maldito, que queria nascer de qualquer jeito.
            “Fomos parar todos na delegacia.   Mais tarde chegou meu pai e Henrique, ambos desesperados.  Creio que o delegado já lhes tinha contado tudo, ou seja, que eu estava grávida e que pretendia fazer um aborto.  Não vou nem repetir as palavras que tive de ouvir de meu pai e de Henrique.  Para resumir basta dizer que o noivado foi desfeito, e com ele minhas ambições.  Mesmo assim Henrique ainda usou de sua influência para me livrar de um processo.  O pior é que tive de me casar as pressas com seu pai e obrigada a te parir de qualquer jeito.  Te juro, por tudo que é sagrado, que de início tentei te amar com a um filho realmente.  Porém, não sei porquê, só conseguia lhe ter ódio, um ódio que nem o tempo apagou.  E talvez nem a morte.
            “Era só o que tinha para lhe dizer.  Agora saia, quero ficar a só.
            Wilson fez menção de dizer alguma coisa, mas viu que sua mãe  não lhe daria ouvidos.  Saiu, foi para o seu quarto e chorou o quanto pode.
            Então era daquilo que era culpado?  De ter simplesmente nascido?
            Duas semanas depois sua mãe faleceu, e só então pode finalmente abraçá-la.

            Novamente colocou a rosa sobre o túmulo.  Queria murmurar algumas palavras, mas não sabia quais.  Ergueu-se.  Já era tarde, um vento leve trazia de longe o frio e anunciava a chuva.
            — Adeus, mãe.  Um dia talvez a senhora me perdoe pela culpa que não tive.
            Caminhou lentamente em direção à saída.  Não olhou para trás.  Não olhou para o vento que erguia as folhagens.  Não olhou para a lápide. Não olhou para o túmulo. Não olhou para a rosa ao chão.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Escolha


 Vamos, querido, empurre. - disse ela sentando-se no balanço como se fosse uma criança.
Empurrei-a. Ela riu. – E vai se acostumando que logo terá uma menininha sentada aqui.
— Pai! Empurra.
Sai do meu devaneio. Ela é tão parecida com a mãe...
De repente ela salta e corre ao encontro das coleguinhas que a chamam do portão.
Dez anos...

— Calma, querida. Vai dar tudo certo.
Seguro firme a mão dela enquanto procuro acompanhar a maca.
— O senhor vai ter que esperar aqui. - disse uma enfermeira me retendo do lado de fora de uma porta.
Nossas mãos foram forçadas a se separarem e por um breve instante ela me dirigiu um olhar forçando um sorriso.
Uma sensação de adeus me apertou o peito.

– Positivo.
Indescritível a reação de alegria dela ao ver o resultado do exame.
Finalmente o filhinho tão desejado viria.  E ninguém no mundo parecia desejar mais um filho do que ela.
            Depois das lágrimas, planos para o quarto, com opções para menino ou menina.
            Seis anos tentando e nada.  Tratamentos e mais tratamentos e nada. 
            Trinta e cinco, trinta e seis, trinta e sete...  Aos quarenta ela desistiu.  Mas continuamos nossas vidas, tentando e sendo felizes.
            Quarenta e um.  Positivo.  Assim... do nada!
              Eu nunca parei de orar. – confessou minha sogra.    Tinha certeza que o Senhor me ouviria!
            As tias, muito católicas, rezaram para tudo quanto é santo, literalmente.  Agora cada uma já planejava o cumprimento das promessas feitas.

            Minha mãe chegou ao hospital trazendo minha sogra.  Esta se sentou num canto afastado, abraçou forte sua Bíblia e ficou orando em meio ao choro.  Ela esperava um milagre.  Mais um.

              Alto risco? – repeti as últimas palavras do médico. 
            Ele explicou alguma coisa sobre idade, útero fraco e outros fatores que parecem ter se reunido num complô contra nosso sonho de paternidade.
            Ficamos meio que em choque durante alguns minutos.  Minha esposa ficou de cabeça baixa, olhando para o vazio, deixando as lágrimas rolarem sem falar nada.
              Quais as chances? – perguntei.
              De se ter uma gravidez normal e um parto bem sucedido? Mesmo com todos os cuidados não são boas.  Mas é difícil falar em porcentagem.  A gravidez ainda está no início.  À medida que se passarem as semanas, vamos avaliando e verificando os níveis de risco.  A questão é: que nível de riscos vocês estão dispostos a correr?  Devem estar preparados para fazer uma escolha se  necessária.
              “Escolha”?
              Sim.  Em situação de risco de morte para a gestante,  a lei permite o aborto.
              Não. – Esta negação saiu firme e sonora dos lábios nada trêmulos de minha esposa.
            Houve alguns instantes de silêncio.
              Se quiser posso recomendar o acompanhamento de uma psicólo...
              Não.
            Ela se ergueu.  Senti a resolução dela. 
             Terei meu filho.
            Naquele dia fiquei observando-a em seu sono, após longas horas deitada em silêncio, sem querer dividir comigo seus pensamentos.
            Acho que dentro dela estava começando uma luta.  O instinto materno versus o de auto-preservação.
            Confesso que dentro de mim o instinto paterno não falava tão forte.  Sim, eu queria muito ter um filho.  Mas ao custo da vida de minha esposa?   Jamais.  Eu a amava muito.  E perde-la...
            E se o filho nascesse e ela morresse?  Como eu iria criar a criança sozinho?  Não, eu não teria forças.  Era melhor deixar as coisas como estavam.  Apenas eu e ela, sozinhos e juntos, vivendo esta vida que não está ruim.  Talvez voltar a considerar uma adoção.  Tantos casais o fazem.  E criança precisando não falta.
            Se dependesse de mim, ela abortaria.  Sim, abortaria. 
            Não me entendam mal.  Sou contra o aborto.  Não vou entrar no mérito da questão de quando a vida começa.  Mas uma vez iniciado o processo da vida, interrompe-la não deixa de ser uma agressão a ela.  No entanto, se tivesse que escolher entre uma pessoa presente no meu dia-a-dia, que compartilhava comigo as dores e as alegrias, minha cara-metade e uma expectativa de um ser que eu não conhecia, que nem se podia dizer ao certo se já existia, não tenham dúvidas, minha escolha seria minha esposa.
              Não quero perde-la. – disse-lhe ao tomar-mos nosso café da manhã.
              Não vai. – respondeu-me sem nenhuma convicção na voz.
           

            Quarta semana de gestação.  Hospital.
              Vou deixa-la internada apenas para observação. – disse-me o doutor.
            Mas eu sabia a verdade.  Os riscos estavam aumentando no decorrer das semanas.  E meu desespero também.  No entanto minha esposa permanecia resoluta.
              Aborte. – disse-lhe minha sogra sob o olhar perplexo da filha —  Prefiro perder um neto que ainda não nasceu do que minha filha.
            Minha sogra sempre fora contra o aborto.  Protestante, sempre andava com uma Bíblia e não perdia uma oportunidade de pregar o evangelho à alguém.  O aborto era inadmissível sob quaisquer circunstâncias.   Era um atentado à vida e à vontade do Senhor.
               Não insista com essa criança.  O senhor há de perdoar se...
              Não. – respondeu firmemente minha esposa, virando o rosto para o canto.
            Nossos princípios são tão fortes quanto nossos interesses.
            Minha sogra não disse mais nada.  Segurou a mão da filha com uma mão e com a outra apertou a Bíblia contra o peito.
            Sinceramente não sei se ela orava pela filha ou por ela mesma.

            As semanas seguintes foram divididas entre nossa casa e o hospital.  E a cada internação só aumentava a minha certeza do que iria acontecer.
              Veja, querido.  É uma menina. – disse ela mostrando-me a imagem de nossa filha na tela do ultra-som.
            Ali estava a imagem de um ser vivo, um ser humano, uma filha sendo gerada dentro dela.  Agora era irreversível.  Eu jamais conseguiria convence-la a optar pela própria vida.  E ela ainda me fez jurar que, se o pior acontecesse, eu amaria nossa filha por nós dois.  E que não sentiria rancor por ela nos separar.

            Presente.  Este foi minha sogra quem trouxe.  Ela praticamente só vinha ver a neta no aniversário.  Esforçava-se no sorriso, no abraço e nas carícias.  Procurava não olhar a neta diretamente nos olhos.  E antes que as velinhas fossem acesas, ela saía.  Minha filha nunca perguntou o porquê.  Ainda assim mantinha uma foto da avó com sua mãe na cabeceira da cama.

            Entramos no quarto de minha querida após o parto.  Eu, minha mãe e minha sogra.  Todos com esses roupões de hospital, luvas e máscaras cobrindo o nariz e boca.
            Minha querida parecia bem fraca.  Mas era só alegria e lágrimas com o pequeno embrulho nos braços contendo um minúsculo ser.  Ela olhou para mim como se dissesse “conseguimos”.  Ergueu uma das mãos e retirou-me a máscara.  Tentei sorrir.
            — Cuide bem dela... por nós dois.
            Levei um baque.
            Terei minhas inúteis luvas, acariciei-lhe o rosto e me inclinei para beijar-lhe e murmurar:
              Não sem você, minha querida.  Não sem você.
            Ouvi o som de um dos instrumentos se tornar agudo e contínuo.
            Fomos rapidamente afastados dela enquanto uma enfermeira retirava a criança e um grupo de médicos iniciava os socorros.
            Minha mãe e eu chorávamos juntos.  Um choro um tanto silencioso, de quem já não tem mais lágrimas para derramar.
            Os médicos finalmente terminaram as tentativas de ressurreição.  Não havia mais jeito.
            Procurei minha sogra em volta.  Só encontrei sua Bíblia sobre uma cadeira.  Não sei por que a peguei.  Não sei por que ainda a guardo comigo.  Não sei por que a mantenho bem à vista sobre a estante da sala.  Não sei por  que minha sogra, tendo-a visto e tocado, não quis me pedi-la de volta.

            Minha filha chamou as coleguinhas e justas correram para dentro de casa.  Eu as segui sem pressa.  Os pais também já tinham chegado e conversavam animadamente na sala.  Ao centro desta estava uma mesa com um lindo bolo em cima.
            Sentei-me a um canto.  Um amigo me trouxe uma cerveja e ficamos observando as crianças se amontoarem ao redor da mesa, enquanto as mulheres tentavam, em vão, organizar tudo.  Acenderam as velinhas do bolo e começaram a cantar o  “parabéns para você”.
              Cinco anos. É...  O tempo passa muito rápido. – disse meu amigo entre dois goles da cerveja.
              Sim.  – respondi secamente com meu copo ainda cheio.
              E aí?  Se pudesse voltar no tempo, vendo sua filha crescida desse jeito agora, abortaria?
            Olhei-o por cima dos óculos que os anos me trouxeram.
            Sim, ali estava minha filha.  Eu seria capaz de levar um tiro por ela.  Talvez fosse até capaz de fazer o que um certo pai fez, matando-se com um tiro para que seus órgãos pudessem ser doados à filha.
            Só que há cinco anos atrás minha filha não era nada, literalmente.  Há cinco anos atrás a mulher mais importante na minha vida era minha esposa.  Então eu não tenho dúvida da minha escolha.  Aborto.
            Mas não foi essa a resposta que dei ao meu “amigo”.
           


Apenas um Palhaço

            Ele entrou no carro, jogou a sacola no banco do carona, ligou o motor e partiu a toda.  Só mais à frente é que retirou a máscara de Pierrô.
            — Desculpe usar seu nome para isso, meu velho. - disse para a máscara.  —  Mas você me entende, não é mesmo?  Você é o único que me entende.

           
            — Respeitável público!  Com vocês: o palhaço! - dizia uma voz anônima no sistema de som.
            As luzes do circo se apagavam.  Apenas um círculo de luz se projetava na entrada dos artistas.  E de lá vinha ele, o palhaço, de cara pintada, de roupa colorida, correndo, tropeçando, perseguindo o macaquinho que lhe fazia caretas.  Apresentava seu show, improvisava, brincava com a platéia.  Todos riam, todos aplaudiam.  E as crianças...  Principalmente as crianças.  Essas riam a valer.  E era para elas que ele fazia seu show.  Eram para elas as suas piadas, seus gestos engraçados, suas risadas.  Elas riam.  Riam mais do jeito dele do que propriamente de suas piadas.  E ele as pegava no colo.  E ele as beijava.  E elas riam.  Riam e beijavam o nariz vermelho do palhaço.
            Seu show era sempre o primeiro das apresentações.  Quando terminava subia uma pequena escada e ficava numa pequena plataforma acima da entrada dos artistas, de frente para o público.  Ali ele tomava o microfone e fazia as apresentações dos artistas, sempre de uma maneira criativa que provocava o riso da platéia.
            Amava seu serviço.  Amava seu circo.  Sim, seu circo.  Fora de seu pai, como fora de seu avô.  Agora era seu. 
 Sempre amara o circo.  Mas nunca gostara de fazer o papel de palhaço. Seu pai o treinara para ser palhaço, mas ele preferia ser trapezista. Não queria que as pessoas rissem dele.  Queria era ser admirado por elas.  Fazer coisas que as deixassem de queixo caído.  Fora trapezista.  Seu malabarismo tirava um oh! da platéia que suava para ele muito melhor que os aplausos.  Só fazia o papel de palhaço quando era mesmo necessário.  Que graça tinha em fazer as pessoas rirem?  Qualquer bobo podia ser um palhaço.  Mas quantos podiam ser trapezistas?
Seu pai era um palhaço.  Não entendia porquê ele gostava de ser o palhaço.  Todos riam dele e ele gostava disso.  E não era apenas devido ao fato de sentir que estava fazendo bem seu trabalho.  Era algo que ia além disso.  Não sabia o quê?  Quando perguntava ao seu pai, ele dizia que era preciso ser um palhaço, ter alma de palhaço, para compreender o que ele sentia.  As palavras não poderiam expressar isso, e seu filho não poderia compreender, pois não amava ser um palhaço.  Ele via nos olhos do pai uma certa tristeza quando falava nisso.  Talvez essa tristeza fosse de saber que seu filho preferia ser trapezista e não palhaço.  Mas um dia ele soube que o motivo não era exatamente este. 
— Você tem raiva de eu não querer ser palhaço, não é? - disse num dia em que discutiam mudanças para o número do trapézio.  Seu pai não aceitava certas inovações.
— Não é isso, meu filho.  Bem que eu gostaria que você fosse um palhaço.  No entanto você não compreende o que é ser um palhaço.  E enquanto não compreender isso não será um bom palhaço. 
— Eu gosto é de ser trapezista.
— Gostaria que isso fosse verdade.
Ele olhou seu pai, espantado.
— Mas é verdade.
— Não, você não ama ser trapezista.  E pior:  você não ama o circo, nem o público.  O que você ama são os aplausos.  O que você ama é a admiração do público. 
— E o que há de mau nisso?  O senhor também gosta de ser aplaudido. 
— Sim, é verdade.  O aplauso, para mim, é um reconhecimento do serviço bem feito.
— Para mim também.
— Nem tanto.  Para você o aplauso é sua aclamação.  Para mim o aplauso é conseqüência do meu trabalho.  Para você é o objetivo.
Sim, era verdade.  Para ele o que importava era o aplauso.  Por isso via tristeza nos olhos de seu pai.
— Com vocês:  os irmãos Dostoievski! - anunciou.
No picadeiro entraram seis jovens com roupas brilhantes sob os holofotes.  Agradeceram os aplausos e subiram para o trapézio. 
O nome pomposo não era real.  Era apenas um nome artístico inspirado no nome de um escritor lá pelos lados da Rússia.  Os circos de Moscou eram famosos.  Por isso um nome que lembrasse a Rússia concedia mais respeito ao jovem grupo de artistas.
O palhaço olhou para o alto e viu as acrobacias dos jovens.  Ouviu, com satisfação o oh! e os aplausos da multidão.  De certa forma aqueles aplausos também eram para ele, que ensinou os segredos da arte àqueles jovens.
Seu pai se fora cedo.  E antes de morrer lhe disse:
— O circo agora é seu, meu filho.  Ame-o .
Seu pai nem precisava lhe ordenar aquilo.  Ele amava o circo, ao seu jeito, diferente do jeito de seu pai amar, mas amava.  Afinal era seu mundo.  Ali fora criado.  Ali se casou, com uma moça de outro circo, que também era trapezista.  Fizeram muitos números juntos.  Correram mundo.   E das acrobacias juntos nasceu um pequeno trapezista.  Ela teve que deixar os trapézios por algum tempo a fim de se dedicar ao filho.  Mas foi por pouco tempo.  Não agüentou ficar longe dos trapézios, do olhar espantado da multidão e dos aplausos.  Sim, ela também gostava dos aplausos (qual artista que não gosta?).  No entanto gostava da mesma maneira que seu sogro.  Os aplausos eram sua recompensa.  Era o público lhe dizendo que seu trabalho fora bem feito.  E ficava feliz com isso.  Sentia que estava fazendo alguma coisa na vida.  Se sentia realizada. 
Ele sabia que sua esposa sentia isso.  Ficava feliz por ela está feliz.  Contudo não era assim com ele.  Só com os aplausos é que sentia que era alguém.  Era só ali no alto que as pessoas o reconheciam, o admiravam, o invejavam.   Em terra ele era apenas mais um, quanto muito o dono do circo.  Talvez por isso quisesse que seu filho também fosse um trapezista.  Queria que seu filho fosse igualmente, ou mais, admirado pelo público, aplaudido, invejado.  Queria que seu filho fosse alguém.  E no seu circo seu filho seria, sim, um alguém.  Seria o astro maior que brilharia no alto do picadeiro.  Mas o destino nem sempre segue os planos que traçamos.
Seu filho, ainda novo, com menos de dois anos, adoeceu.  E com ele todo o circo.  Ia piorando a cada a olhos vistos.  Quase não saia do colo da mãe.  E o seu pai, quando não estava no picadeiro, estava ali, ao lado de seu filho.
Sim, por mais que lhe doesse, tinha que deixar o filho e ir para o picadeiro, pois o maior espetáculo da Terra não pode parar, nunca.  Assim seu pai lhe ensinara.  Assim pretendia ensinar ao seu filho.  Quando sarasse e crescesse, iria saber que seu pai não deixara o circo parar.  E que fizera isso não porque amava mais ao circo que ao filho, mas porque queria que seu filho tivesse um circo para herdar.   O circo não pode parar porque é a vida de seus artistas.


Olhou pelo retrovisor.  Ninguém o seguia.  Nenhuma patrulha por perto.
Talvez fosse melhor trocar o carro.  Alguém pode ter anotado sua placa.  Mas onde iria conseguir um outro carro?  Devia ter pensado nisso antes e deixado um outro veículo à espera em algum outro canto.  Agora era tarde.  Iria naquele mesmo.
Sinal vermelho.  Sempre vermelho quando se está com pressa.
O motorista do carro à direita olhou para ele.  Aquela criança na calçada também.   Por quê todo mundo estava começando a olhar para ele?
Verde.  Seguiu em frente.  Acelerou.  Estava com pressa.  Todo mundo olhava para ele. 
— Calma, meu caro. – disse para si mesmo. — Você está nervoso.  Relaxe.  Não tem ninguém te perseguindo.   A culpa não foi sua.  Eles que te obrigaram.

— Seu filho morreu. - lhe disseram quando estava prestes a entrar em cena. 
Seus olhos umedeceram.  Seu filho.  Seu querido filho.
Enxugou as lágrimas.  Retocou rapidamente a maquiagem e entrou em cena.  Sim, o maior espetáculo da terra  não podia parar.   Com toda a força que tinha no coração conteve as lágrimas e mesmo com as mãos trêmulas conseguiu fazer seu show.   Mas dessa vez os aplausos não soaram como antes.  Sempre haveria um lugar vago na platéia.  Nunca receberia o aplauso do seu filho.  Nunca seria o seu herói.  Nunca ensinaria a ele os seus segredos. 
Desceu do trapézio.  Agradeceu novamente a platéia.  E assim que se viu nos bastidores, longe do olhar da platéia, deixou-se cair num canto e chorar em alta voz.  
           

— Droga.  Não acredito que também esqueci de encher o tanque.
A poucos metros encontrou um posto.  Entrou numa pequena fila. 
O frentista já atendia o carro da frente, no entanto olhava de vez em quando para sua direção.  Um outro carro parou atrás.
Por que todo o mundo olhava para ele?   Não podiam saber do que fizera.  Será que já saíra no rádio e na TV.  Talvez tivessem a descrição do carro.
Um outro frentista ao telefone olhou para ele.  Parecia agitado.  Desligou, olhou novamente para ele e seguiu em sua direção com um leve sorriso.
Virou o volante. 
Ele já sabia.  Todos já sabiam. 
Acelerou e arrancou em disparada.


Mais uma vez fora necessário substituir o palhaço.  Já não se importava.  Não era mais trapezista.  Era apenas o dono do circo. 
Olhou-se no espelho, terminando os retoques da maquiagem. 
Como poderia ser um palhaço?  Não tinha alegria para transmitir.  Não conseguia sorrir com sinceridade.  Se o público ria, ria das piadas, não do palhaço.  Não, não era um palhaço.  Era apenas um homem tolo numa fantasia tola.
Entrou em cena com os seus assistentes.  Fez os mesmos esquetes de sempre, contou as mesmas piadas.  Todos riam. Todos...  Não.  Naquele dia nem todos riram.
Ele observou um grupo de cerca de quinze crianças.  Estranhou um grupo grande assim de crianças juntas.  Deviam ser alguma turma da escola local. No entanto as idades pareciam variar muito para serem de uma mesma turma.  Porém, o que mais chamou a atenção dele é que uma das crianças não ria.  Estava séria.   Parecia não achar graça de nada.  As outras crianças no circo riam muito, ao lado dos pais, dos irmãos ou dos amigos.
Aproximou-se daquele estranho grupo.  Dirigiu às crianças algumas piadas.  Algumas riram, mas aquela criança não.  Ele perguntou a ela de que escola eram.
— De nenhuma escola. - respondeu uma senhora que acompanhava as crianças.  — São do Orfanato Santa Luz. 
— Orfanato? - o palhaço olhou para aquelas crianças.  Não tinha pais.  Não tinham lar. No entanto riam.  —  E por que esta aqui não ri?
— Ela é a mais recente no orfanato.  Perdeu os pais a poucos dias.  Não tem motivos para sorrir.
Ele olhou para aquela criança. Deviria ter uns três anos.  Sentiu ternura por ela.  Era um menininho.  Se seu filho estivesse vivo estaria com aquela idade. 
Não, aquela senhora estava errada.  Aquela criança tinha um motivo para sorrir:  estava viva.  Talvez a tristeza ainda não lhe estivesse dando espaço para a alegria.
— Quer vir com o palhaço.
Ele o pegou no colo.  O menininho ficou olhando para ele. 
— Quer ser uma palhacinho?  - tirou seu nariz de bola vermelha e colocou no narizinho da criança.  — Pronto, agora você é um palhaço de verdade.
A criança sorriu.  E ele também.
Levou o menininho para o centro do picadeiro e brincou com ele.  Todos riram, e a criança também.
Ao final da apresentação devolveu o menino à sua turminha, que, aliás, ficou o nariz do palhaço.
Nos bastidores ele se olhou no espelho e sorriu. 
Não, não era um homem tolo numa fantasia tola.  Era um palhaço.  Sim, estava se sentindo um palhaço!  E estava gostando disso! 
Entrara triste no picadeiro e saíra feliz.  Talvez o palhaço não tenha que ser feliz para transmitir alegria.  Talvez o palhaço tenha que transmitir alegria para ser feliz. 

O carro parou.  A gasolina acabara.  Felizmente o circo não estava muito longe.  Poderia seguir a pé dali.  Pegou a sacola, a máscara de Pierrô e começou a caminhada.

— Tenho que ir.  - disse-lhe a esposa um dia.
— Por quê?
Ela olhou em volta do picadeiro.  Estavam os dois sozinhos no circo.
— Não posso mais continuar aqui.  Está muito difícil.
— Olha, eu sei que o circo não está passando por bons momentos.  A temporada está ruim.  Mas vai melhorar, acredite.
— Querido!, não se trata disso.  Cresci no circo, casei-me no circo.  Eu amo este picadeiro.  Mas...   -  olhou para o alto, para o trapézio -  desde que nosso filhinho se foi...  Eu não consigo.  Eu não consigo sentir mais alegria aqui dentro.  Os espetáculos me fazem chorar.  Preciso me afastar um pouco do circo ou morrerei de tristeza.  Você compreende?
Sim, ele compreendia.  Se não tivesse redescoberto a alegria sob a máscara de palhaço estaria do mesmo jeito.  Só que ele não poderia abandonar o circo.  Para ela o circo trazia tristeza porquê lembrava o filho.  Para ele era a única alegria que lhe sobrara, pois conseguia ver seu filho sorrir na platéia. 
Ele a abraçou.  Ela sabia que ele não a acompanharia.  Mas tinha que ser assim.  São muito estranhos os rumos que a vida toma.
Aquela separação lhe doeu muito.  Em menos de um ano perdera as duas pessoas que mais amava.  Uma a morte levara.  A outra, a vida.
Mas o espetáculo tem que continuar, embora houvesse cada vez menos platéia para assisti-lo.  Talvez o circo já não seja mais o maior espetáculo da Terra.  Mesmo assim, fizesse sol ou chuva (dentro ou fora de seu coração), ele estaria numa nova cidade, batendo suas estacas, armando a lona e convidando o povo à alegria.
Talvez os tempos não fossem de alegria.  Seus artistas, pouco a pouco, estavam migrando para companhias maiores, ou mesmo deixando a vida de circo. 
Suas finanças estavam apertadas.  Se não conseguisse um empréstimo no banco teria que vender algumas coisas do circo para continuar dando seus espetáculos.  Fora aos bancos diversas vezes, mas não conseguiu nenhum empréstimo. 
Os poucos artistas que ainda tinha não tiveram escolha senão abandonar o circo.
Sim, o circo estava morrendo.  E com ele aquele palhaço. 

— Ei, amizade!  O quê você tá levando aí?
Ele olhou para o lado.  Era um bando de jovens. 
— Nada que interesse a vocês.  Com licença.
— E aí! Qual é, chefia?  A gente só quer dá uma olhada na sacola.  Que que há?
— Estou com pressa.
Um deles cercou sua frente.
— Aí, cê tá muito estranho.  Qual é a tua?
— Me deixem.  Tenho que voltar para o circo.
— Para o circo, é? Legal!  Que que tu é? O palhaço?
Sim, era o palhaço.  E daí?  Tentou seguir em frente mais foi empurrado e caiu no chão.  A sacola se abriu e um maço de notas  caiu.
— Ora, ora.  Vejam só.  O palhaço tá cheio da grana!  Não é muito seguro andar por aí com essa grana toda, sabia?
O rapaz abaixou-se, pegou o maço de notas. O palhaço lhe segurou o braço.
— Deixa isso! É meu.
Foi chutado.  Tentaram arrancar a sacola de suas mãos, mas ele resistia.  O  chutaram mais ainda.  E continuaram chutando e dando socos.

Parou o carro.  Colocou a máscara de Pierrô. Entrou correndo no banco. Sacou a arma.
— É... É um assalto.

A chuva o despertou.
O que acontecera, mesmo?
Os jovens...
A sacola!  Onde estava a sacola?
Olhou em volta. Tateou.  Nada.
Levaram a sacola.  Todo aquele sacrifício em vão.  Talvez fosse castigo.  Mas ele só queria salvar seu circo.
Encontrou a máscara de Pierrô perto dele.  Estava rachada.  O semblante eternamente triste.  Talvez mais agora do que nunca.  Pegou-a e ficou sentado no chão olhando para ela, sem se importar muito com as dores.
— Desculpe.  Foi um erro tolo, eu sei.  Mas o que eu poderia fazer?
Ergueu os olhos.  O circo estava perto.  Levantou-se com dificuldade e continuou a caminhar.

— Ponha o dinheiro na sacola!  Depressa, vamos!  Isso, isso.  Pronto, já basta.  Tchau!

Entrou no circo. 
Parecia chover tanto dentro dele quanto fora.  Ergueu os olhos para o alto.  Sim, a lona estava precisando de reformas.  Mas isso já não importava.
As dores estavam ficando mais fortes.
Foi para o centro o picadeiro.  Olhou para a arquibancada.  Imaginou-a cheia.  Tentou sorrir.  Colocou a máscara.  Ficou com os olhos fitos na platéia. 
Deixou-se cair ajoelhado, vencido pela exaustão e dor.
Por quê?  Por que as coisas na vida tinham que ser assim? Por que ninguém dava mais valor ao seu circo? O que fizera para merecer tanto sofrimento?  Só queria ser feliz e levar alegria aos outros.  E, pelos Céus, por mais infeliz que fosse estava conseguindo levar alegria aos outros.  Por que então tudo acabou? 
Talvez não haja mais lugar no mundo moderno para a alegria.  Os homens sufocam seus problemas nas cervejas, procuram consolo nos braços de mulheres que não amam e fogem da verdadeira alegria do espírito.  Parece que ser feliz fora do padrão político-social-esconômico é crime.  Talvez tenha sido esse crime o que  cometera.  A sociedade talvez não compreendesse o seu jeito de ser feliz.  Não entendiam a importância de sua profissão, como ele antes também não compreendia.  Para todos ele era apenas um palhaço.
Ergueu os olhos para o alto da lona.
E era só o que pedia para continuar sendo.
Apenas um palhaço.
Apenas... um palhaço.