sábado, 4 de fevereiro de 2012

SEM BONÉ, LUPA E CACHINBO (parte 1)


    Hum... Domingo.
    Hum... Domingo de Sol.
    Hum... Domingo de Sol no Rio de Janeiro.
    Abro a janela do meu quarto para respirar fundo.
    O Sol já tá lá em cima.
    Lá em cima?!  Putz, quase meio-dia!   Elena deve estar muito brava a esta hora. 
    Procuro meu celular.   Cadê o bendito.  Ah, sim.  Deve estar no escritório. 
    Corro para minha sala.  Sim, minha sala.  Este é meu ap/escritório. E Elena é minha futura esposa.  E antes disso, minha futura noiva.  Hoje, minha talvez-ainda-namorada.
    Achei.  Como é que você foi parar de baixo da almofada?  Espero que ela...
    Nove ligações perdidas!  Verifico o que já sei.  Elena.
    —  Oi, querida. ...  Sim, eu sei que horas. ...  Sinto muito.  ...  Não, eu não tava bebendo.  Você sabe que sou um homem sério. ...  Querida, nem todo homem sério tem a sorte de ter um emprego estável. ...  Ah, que isso...  Você sabe que sou um jovem empreendedor.  Tenho meu próprio negócio.
    Ela nunca considerou ser detetive particular exatamente um negócio.   Para ela, e para os pais dela, um homem sério tem que ter um emprego fixo, com um salário no mínimo razoável, freqüentar uma igreja, não fumar e não beber.  Só me deixaram o futebol.
    —  Ah, que isso...  A gente pode lanchar agora, pegar umas horinhas de praia, depois almoça  ...  Sim, ou janta...  ...  Você tá de gozação! ...  Não.  Pode dizer para sua mãe deixar o frango e a farofa na geladeira.  ...  A praia tem ótimos quiosques. ... Tá bom.  Tô aí em vinte minutos. ... Outro... Tchau.
    Calção, sandálias, camiseta, óculos-de-sol, celular, chaves e porta.
    Antes de sair correndo escada abaixo, ajeito a placa na porta.

    Victor Liev
    Detetive Particular.

    —  Bom dia, Mr. Lie.  Ou boa tarde. – diz Dona Márcia, uma velhinha “simpática”, saindo do elevador.  Ela é minha vizinha do apartamento exatamente em frente ao meu.  E depois que iniciei meus negócios, ela instalou um olho-mágico em sua porta.
    Respondi com um aceno e tomei meu rumo.
    Ela gostava de implicar comigo com aquele apelido.  Sei que o “mister” é pura implicância, como se me chamasse de metido por causa do nome. Mas não sei se a omissão do “v” foi de propósito ou se por dificuldade de pronúncia.   E pior é que pegou.  Principalmente depois que alguém descobriu que “lie” significa mentira em inglês.
    Pois é.  Contrate o Sr. Mentira para descobrir a verdade. 
    Se eu soubesse inglês, não teria criado esse nome.
    Isso mesmo.  Criado. Meu nome verdadeiro é José Maria da Silva.  Fala sério!  Você contrataria o Zé Maria para descobrir se sua esposa tá te traindo?  Não dá nenhuma credibilidade, não é?  Um nome estrangeiro sempre tem um impacto maior.  Mas como vocês já viram, o tiro praticamente saiu pela culatra.
    Em poucos segundos desço as escadas.  Segundo andar.  Nem vale a pena esperar o elevador.
    Garagem, carro, rua, quebra-mola, sinal-vermelho, relógio, sinal-verde, rua, quebra-mola, rua, estrada, acelerador, estrada, estrada, estrada, rua, freio, quebra-molas, rua, vaga, freio-de-mão, janela, namorada.
    Antes que eu chegue ao portão, ela já vem saindo.
    Por vezes eu paro ao longe ou fico esperando no carro só para vê-la desfilando.  Modéstia à parte, minha namorada é surpreendentemente linda.  Uma loira alta, esguia, com um corpo bem delineado em duas horas diárias de academia e beneficiado pela genética e pelos seus vinte e oito anos.  Anda ereta, de cabeça erguida.  Não por vaidade ou metidez.  Esse é simplesmente o seu jeito. 
    E você acredita naquele ditado que toda loira é burra?  Muito engano seu.  Ela é formada em administração de empresas, tem pós e já tá começando um mestrado.  É gerente de um supermercado nada pequeno na região.  E eu?  Bem, é melhor nem falar nisso.  Mas já deu para entender a implicância dos pais dela por mim, né?
    Abro para ela a porta de meu Gol 1.0 de ar-condicionado pifado e direção nada hidráulica.  É que ela não gosta de pedir o Corola do pai emprestado.
    Tá, já sei.  Agora você sabe porque me chamam de Mr. Lie.  Mas juro que é tudo verdade.  E apesar de ser detetive, ainda não descobri o que esse monumento viu em mim.  Certamente tenho algo de grandioso... o caráter.  Falo sério!  Sou um bom caráter.  Ou ao menos procuro fazer de tudo para ser.  Tanto que já tive várias namoradas e nunca traí nenhuma (ai... por quê ninguém acredita em mim?).
    Chave, ignição, seta, retrovisor, acelerador, rua, freio, quebra-molas, acelerador, sinal-vermelho, freio, relógio, sinal-verde, acelerador, estrada, estrada, estrada, freio, pedágio..., acelerador, estrada, estrada, estrada, praia... acostamento, carros, carros, vaga, seta, freio-de-mão.
    Ah, finalmente praia e o delicioso mar!  E esta praia é mesmo especial.  Para começar, não se tem acesso por ônibus, só se chega de carro.  Isso diminui bastante a concentração de povão nas areias.
    Elena se adianta para garantir um bom lugar e estender a toalha.
    Essa é uma cena que faço questão de parar para ver.  É só ela pisar na areia que todos os marmanjos se voltam para ela.  Alguns ainda dão o vacilo de deixar a companheira perceber.  E não se passa dez minutos, as águas a frente só fica com mulheres.  Os homens todos resolveram estranhamente pegar um sol.
    —  O senhor é o segurança dela?
    Sorte do pentelho a mãe o ter puxado pelo braço.
    Armei a barraca e fui direto para a água. 
    Elena curte mais a areia.  Gosta de pegar um bom bronzeado.  Mas sempre fica de olho quando eu entro na água.  Será que minha natação não convence?  Ah, eu já disse que ela foi campeã de natação no ginásio?
    Não demorei muito a voltar para a areia e dar-lhe um demorado beijo na boca.
    Podem olhar, marmanjos, que não tenho ciúmes.  Minha experiência profissional já mostrou que não adianta.  Quando a mulher quer trair, a hora do almoço é suficiente.  Então o jeito é confiar.  E eu confio na minha mina.  E se quiser fazer fofoca dela é bom que tenha provas, porque eu tenho um três-oitão.  Brincadeira.  Mas tenho bons amigos advogados que gostam de ganhar um extra fácil por calúnia e difamação.
    Peguei o bronzeador e comecei a passar-lhe pelas costas, nádegas...
    Isso!  Morram de inveja, que eu gosto.  He, he. E aí, companheiro, quer um pouco para passar na celulite da patroa?
    Podem olhar.  Que pena, né?  Esse monumento aqui já tem dono.  Tá, é verdade.  Ainda falta registrar em cartório.  Mas já tô cuidando disso.
    Ela sorri.  Ela sempre sorri para mim.   
    Senta.  Compra dois sorvetes do ambulante.  Me dá um.
    Sim, ela pagou.  Já desisti de tentar ser sempre um cavalheiro com ela.  Umas vezes ela paga, outras eu pago, outras a gente divide.  Não fazemos contas.  E é assim que ela gosta.  Eu não me importo.  Não sou machista.  Não me sinto nada constrangido se ela sacar o cartão de crédito primeiro para o garçom.
    Pego o jornal para dar uma olhada nos esportes.  Mas não adianta.  Meus olhos logo caem sobre a página policial.
    Mais dois mendigos, digo, moradores de rua mortos nessa madrugada.  Com esses já são onze.  Polícia sem pistas.  Parece que algum assassino em série está fazendo uma “limpeza” nas ruas, a seu modo.  O motivo?  Vá saber!  Talvez seja simplesmente isso mesmo, limpeza. 
    Por mais humanitário que você seja, tem que concordar: mendigos poluem visualmente a cidade.  Tá, moradores de rua.  É claro que matá-los não é e nunca foi a solução.  E qual é a solução?  Sei lá.  Isso já é papo para os sociólogos de plantão.
    Passo os olhos pela página dos quadrinhos.  Pelo menos esses me fazem rir.
    Fecho o jornal e o jogo de lado.
    Deito-me confortavelmente à sombra (sempre).  Fecho os olhos para melhor sentir a brisa do mar e ouvir seus murmúrios.  Deixo o tempo passar sem pensar ou me preocupar com nada.  Essa é a tarde de Domingo que gosto.


    Abro os olhos ofuscados pela luz.
    Levanto-me jogando o cobertor para o lado.  Fecho as cortinas.  Não quero que meu anjo acorde.  Observo, com um belo sorriso de satisfação no rosto, aquele corpo dourado em cima de minha cama.  Sou um cara de muita sorte.
    Essa foi uma noite de Domingo que gosto.
    Tá, eu sei, minha mãe vive me dizendo isso.  E a mãe dela também.  Deveríamos ter ido à igreja.  E eu sempre fui.  Sempre fui um bom cristão.  Um dos mais certinhos que eu mesmo conheci.  Mas a gente vai vivendo, conhecendo mulheres, vendo presbíteros, pastores e madames traindo seus cônjuges e devagar parece que as convicções vão desmoronando.  Tenho raiva quando penso que a maioria dos irmãos parece estar na igreja por ter que dar certa satisfação pessoal e não exatamente por fé individual.
    Saio do quarto.
    Hum!  Fora do ar-condicionado sou lembrado que ainda estamos no verão. 
    Escovo os dentes e tomo um longo banho para refrescar.
    Preparo um café.  Só brasileiro mesmo para tomar café numa manhã super quente de verão.  Mas não consigo começar bem o dia sem ele.
    Provo.
    A campainha toca.
    Engasgo.  Olho o relógio.  Nove e vinte e cinco.  Já era hora de estar no meu escritório.
    Corro para o quarto e tento me arrumar o mais rápido possível sem fazer barulho.
    Novo toque.
    Preciso arrumar um escritório decente e uma secretária.
    Felizmente morro num país tropical.  Nada de terno e gravata.  Um tênis, uma calça jazz de bom corte e uma camisa de marca já é o suficiente.  Dois minutos e meio e já estou abrindo a porta.
    Acho que meu queixo caiu.  Sim, ele caiu.  Ela olhou para minha boca.
    — Oi.  Sr. Victor Liev?


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