domingo, 12 de agosto de 2012

Sem Boné, Lupa e Cachimbo (parte final)

V

– Então, a senhora, digo, a viúva Susan Baldoni foi um caso rápido?
Não pude deixar de sentir graça da pegadinha por trás da pergunta dúbia. E como qualquer resposta só serviria para me complicar, simplesmente sorri e me deitei na areia.
Depois de um caso (profissional) resolvido, nada melhor que uma bela praia com uma loira gelada ao lado.
– Não fale assim, querida. Ela tá passando por uma pior.
– Uma pior? Com dois milhões pagos pelo seguro de vida do marido você acha mesmo que ela tá numa pior?
– Que isso, linda! Nada paga a perda de uma pessoa amada.
– Há! Até parece. Você não leu o jornal de hoje, leu.
Ela joga o jornal em meu peito. Logo percebo a foto de Susan de vestido preto e óculos escuros ao lado de seu advogado. A reportagem vinha dizendo o que eu já sabia e o que a polícia logo descobriu. Lúcio Baldoni não era tão bom advogado assim. E pelo visto, descobriu que alguns mendigos ganhavam mais em um dia sentados do que ele rodando os fórum da cidade. A reportagem fez sua pesquisa. A maioria conseguia aí quase um salário mínimo por mês. Só que bons pontos e pouco concorrência pode render bem mais. E o Dr. Lúcio se mostrou melhor estrategista do que advogado. Deve ter sido com sua andanças que percebeu um bom ponto em rua bem frequentada e sem mendigos.. Pudera. Não havia marquises e nenhum outro lugar em que pudessem se abrigar. Mas ele não precisava de abrigo. Tinha sua casa para voltar ao final do dia. Segundo alguns comerciantes, ele era um mendigo discreto. Não perturbava muito. No entanto, baseada nos extratos bancários do falecido, a polícia chegou à conclusão que ele arrecadava em média uns R$ 300,00 por dia. Como não ficava no ponto todos os dias, a média do mês chegava a uns R$ 7.000,00. Isso é salário de alguns bons executivos e sem descontar nem um centavo de imposto. E mesmo não sendo tão bom advogado, ganhava algumas causas que na média mensal rendia outros R$ 4.000,00. Nada ruim para um casal sem filhos. Infelizmente ele deu azar de topar com algum maníaco matador de mendigos. Deste a polícia não tem ainda nenhuma pista.
A reportagem ainda informa que a mãe da vítima acusa a viúva de ter levado o marido a este ato de desespero devido sua vaidade e gastos de madame, sem nem sequer pensar em trabalhar para ajudar nas despesas.
Ainda atordoada pelos acontecimentos e cansada das acusações, a Sra. Susan Baldoni viajou para Miami.
Esta última parte Elena fez questão de destacar circulando com seu baton.
– Então, Miami é ou não é um bom lugar para passar um luto? O coitado ainda tá esfriando no túmulo e olha só quem que tá descansando em paz!
Não dá para descordar dela. Mesmo que desse, não tentaria.
Só que a vida é assim mesmo. Nem todas as mulheres amam seus maridos. Mesmo que amem, uma vez morto, acabou. Não há porque esperar o corpo se decompor no túmulo para seguir em frente. E se o marido deixou um gordo seguro de vida, porque não usar?
Jogo o jornal de lado e fecho os olhos.
Elena logo vai entrar na água, se acalmar, voltar e me pedir para passar o bronzeador. E os marmanjos ficarão olhando com inveja. É assim. A vida segue seu rumo.
Pobre Susan...
Bem, nem tão pobre. Além dos dois milhões, tem o apartamento que vale cerca de quinhentos mil reais. Estava financiado em nome de Lúcio. Como estes financiamentos são em prazos muito longos - cerca de vinte anos - os bancos costumam ter seguros atrelados. Com a morte do tomador do crédito, o seguro quitou o saldo devedor. E ainda tem o Corola, o golzinho...
Escritório, estacionamento, Corola, rua, trânsito, estacionamento, rua, trânsito, estacionamento, Gol.
Susan... Nariz coçando.
“Meu marido era, é um homem maravilhoso”
Olhar para o horizonte.

Abro os olhos meio que repentinamente.
Hum...
Dois carros.
Três vagas de estacionamento.
Tá. Isso até entendo. O Dr. Lúcio Baldoni tinha seu nome e vida social para manter. Ninguém podia saber que boa parte de sua renda vinha de ser pedinte. Assim, usava o Corola em seu círculo social e familiar. Mas não poderia chegar com ele nas redondezas do seu “segundo emprego” sem chamar a atenção. Daí o golzinho. Tão comum nos dias de hoje que chama menos atenção que Fusca.
Elena se levanta e vai para seu banho de mar.
Certo. Temos então: casa, Corola, primeiro estacionamento, escritório. Era bom ser visto circulando por ali. Depois podia sair e todos pensariam que estava em seus afazeres profissionais. Assim: escritório, Corola, segundo estacionamento. Este em uma área neutra, onde ninguém o poderia reconhecer nem como advogado, nem como mendigo. Segundo estacionamento, Golzinho, terceiro estacionamento. Este com muitos caros populares e boa circulação. Duvido que saísse do carro já trajado de mendigo. Provavelmente usava roupas simples e terminava sua transformação em algum canto discreto.
Como Lúcio foi encontrado morto em seus trajes de pedinte, então o golzinho estava no lugar certo. Mas o Corola...
De alguma forma o Corola saiu do segundo estacionamento e voltou para o primeiro. Ou isso, ou neste dia Lúcio usou outro tipo de transporte.
Não. Coincidência demais.
Susan. Susan coçando o nariz. Um clássico gesto involuntário da mentira. Como se quisesse esconder os lábios que não dizem a verdade.
Elena caminha de volta das águas. E dizem que sereias não existem.
O olhar de Susan pela janela, admirando o horizonte, enquanto falava do marido.
Tenho que fazer um curso de psicologia. Meu instinto me diz que ela vislumbrava o futuro e não o passado.
– Filha da Puta!...
– O quê?!
– Hein? Oh, não, querida... Não é contigo, minha linda. Claro que não.
Elena se senta ao meu lado com cara de não muito convencida.
– Linda! - tento beijá-la, mas ela se esquiva. – Ora, que isso?.. Sabe que jamais falaria isso para você. E que eu tava pensando na Susan... não!, quero dizer, no meu caso dela. - ela faz menção de se levantar, mas a seguro pelo braço. – Caso profissional. Profissional. Acho que você tem razão sobre ela.
Minha sereia se acalma e me olha sério.
– Então ela é uma filha da puta?
– Sim. Bem, acho que sim. Não gosto muito desse termo. Ofende quem não tem nada a ver.
Exponho a ela meu raciocínio.
– Tá. Entendi. - diz, já bem calma. – Faz sentido o que você diz. Mas é tudo muito vago, não? Apenas suposição. Que foi? Não me olha assim. Não a estou defendendo. Só acho que você precisa de provas concretas.
– Sim, é verdade. O ideal seria a arma do crime.
– Acha mesmo que ela teve coragem de atirar no marido?
– Não. O que me faz pensar que ela não está viajando sozinha.
– Ah, tá! A esposa que seduz um amante e o convence a matar o marido para ela herdar sua grana e os dois viverem felizes em uma ilha paradisíaca. Você tem lido muito romance policial.
– Muitas páginas policiais. - corrijo.
– Aí é que tá! É meio difícil acreditar que haja um assassino de mendigos e que o amante simplesmente aproveitou a oportunidade para matar o dr. Lúcio e jogar a culpa nesse assassino. Não. Quem matou o dr. Lúcio, matou também os outros mendigos para despistar. Uns dois a mais bastariam. Só que a polícia não tava dando a mínima pro caso. O corpo do dr. Lúcio iria ser enterrado como indigente e a pessoa do advogado dada como desaparecida. Até Susan herdar os bens e o seguro querer pagar alguma coisa ia ser muita briga na Justiça. Afinal, sumido não é morto.
– Então o amante teve que incrementar sua série de assassinatos para chamar a atenção da mídia e uma resposta da polícia.
– Exato. Mesmo assim, podia demorar. Pior. O interesse desperto para o assassino de mendigos fez a polícia esquecer o caso do dr. Lúcio. Mais ainda. Quanto mais mexessem no caso, mais perto poderiam ficar da verdade. Esperar os fatos se desenrolarem estava ficando perigoso.
– Melhor então a madame contratar um detetive particular para achar o corpo do dr. Lúcio. E usar um vestido tirado de filme noir para melhor motivá-lo a resolver o caso em um dia.
– O cheque foi bem motivador...
– Sei... Mas e ai? Se tudo isso for verdade, a madame e o amante se safaram num final feliz no exterior.
– Se não houver mais mendigos assassinados com a mesma arma por alguns dias, pode ter certeza que sim.
– Nada justo, isso!
– Bem vinda ao mudo real, linda. Digo mais. Se o tal amante foi tão esperto a ponto de não ser visto por ninguém, então ele certamente já limpou e se livrou da arma do crime. E o otário que a usar e der o azar de cair nas mãos da polícia vai servir de bode expiatório. Vai ser caso de mendigo encerrado e arquivado.
– E ninguém nunca vai se lembrar de um tal dr. Lúcio Baldoni e seu linda esposa ardilosa. Não me conformo!
– Se te conforta, ela cometeu um erro.
– Ah, é? Qual?
– Achar que um milhão de reais é dinheiro.
– E não é?
– Para mim, um pobre coitado, é. Para alguém que sabe usá-lo como capital para gerar bons negócios, é. Para uma madame gastadeira e seu amante aproveitador, não. Quanto você acha que custa um apartamento em Miami?
– Tá me dizendo que ela continua pobre e não sabe disso?
– Sim. E dentro de alguns meses saberá.
– Aí estará sem dinheiro, sem marido generoso e sem amante prestativo.
– Terá sorte ainda, se ele não quiser queimar arquivo só por garantia. Não tem jeito, linda. De uma forma ou de outra aqui se paga o que aqui se faz.
– Tá, você me convenceu. Mas ainda continua sendo tudo um exercício de especulação. - ela se deita junto a mim.
Minha intuição me diz que tô certo. O tempo e as manchetes nos jornais confirmarão. Pelo menos o cheque tinha fundos. Deu até para concertar o ar-condicionado do golzinho ( - R$...) e as contas atrasadas ( - R$ …..) e o aluguel do mês ( - R$ …......). Só falta comprar as alianças ( - R$..............................................).
– Ai, ai... - me levanto.
– Ei, querido, que foi? Onde você vai?
– Comprar um caneco.





FIM

Sem Boné, Lupa e Cachimbo (parte IV)

IV
– Deixe ver se entendi, sr. José Maria da Silva, vulgo Victor Liev. - diz, em tom de gracejo, o delegado Raí. Creio que testar a chave em vários gols não foi uma boa ideia. O funcionário do local desconfiou e chamou a polícia. – O senhor é detetive particular e está investigando o sumiço do advogado Dr. Baldoni. Correto?
– Sim, senhor. - disse, sem querer rebater o olhar inquisidor dele.
– Felizmente, a Sra. Baldoni confirmou sua história. E o delegado responsável pelo caso, também. Mas vou ser sincero. Não gosto de amadores interferindo e atrapalhando o trabalho da polícia.
Amador? Tenho até certificado e licença.
– Tô liberado?
Ele me olha sem esconder um aborrecimento. Ia até falar algo mais, quando foi interrompido por um subordinado.
– Temos mais um, delegado.
Ele se levanta, joga os meus documentos em minha direção.
– Caia fora. Estamos sem tempo para perder com madames e maridos fujões. Mas se descobrir algo importante, ligue para o delegado Caio.
E sai, com ele quase me empurrando para fora de seu pequeno escritório. Sorte a minha não terem achado a aliança no bolso de minha calça jeans. Depois de devidamente identificado e sem portar arma, não fizeram questão de uma revista mais detalhada. Só não deu para escapar de uma visita à delegacia.
O delegado Caio é o responsável pela investigação do sumiço do Dr. Baldoni. No entanto, ele e seus colegas de outras delegacias estão mais preocupados em encontrar o assassino de mendigos. Cada vez que um é morto os jornais fazem sua crítica social e esmagam os políticos, que por sua vez fazem os telefones dos responsáveis pela segurança pública tocarem. Assim, a pressão para se achar o criminoso é enorme.
Saio da delegacia e pego um ônibus até onde deixei o Corola.
Quê? Táxi? Vocês nem imaginam o preço da corrida...
Quero curtir um pouco mais o carrão. No entanto, o dia já deu o tinha que dar e eu já tô doido para deitar um pouco. Assim, pego o caminho mais curto para a garagem.
Entro novamente no meu quiném. Está decidido. Ainda vou ter um carro... Ainda vou ter um Corolla... Mas a aliança em meu bolso me lembra que tenho bens mais importantes à adquirir.
Ligo para Elena. Toca até cair na caixa-postal.
Mulheres...
Ligo o motor e estendo a mão para o botão do ar-condicionado. Ah, sim. Lembrei. Não tem. É tão fácil se acostumar com o que é bom.
E é tão frustrante voltar ao que não é tanto assim.
Tá. Tô reclamando muito. Pelo menos o meu tem um cheiro bom.
O motor morre bem no meio de uma manobra de ré.
Cheiro ruim. Cheiro de roupa suja. Mendigos. Mendigos mortos. Assassinados.
Ligo novamente o motor e volto para a vaga.
Pego o meu celular e acesso a internet. É um pouco incomodo usá-lo para isso. Mas preciso verificar algo.
Consegui. Um site de direitos humanos está divulgando as fotos dos mendigos assassinados. Alguns deles tem nome e alguns dados a mais. Três estão como desconhecidos. O site reclama da demora da polícia em identificar os corpos. Alegam que sequer tiraram as digitais.
Amplio o máximo que posso as fotos uma por uma. Algumas são antigas, cedidas por amigos das vítimas. Outras são após o óbito. Uma delas me chama a atenção.
Ligo o motor e volto à delegacia.

Demorei um pouco a convencer o delegado a me deixar ver um dos corpos. Creio que a ideia de ter um advogado entre as vítimas não lhe agradava. Mas enfim, em face a semelhança das fotos do site com as do meu cliente ele cedeu. Assim, cá estou eu em frente a um corpo que já devia está descansando em paz.
O legista tira o lençol que o cobre. Apesar do rosto não estar tão bem quanto o dos fotos, algumas pequenas pintas e leves manchas não deixam dúvidas de que é ele. A pedido do delegado o legista abre a boca do falecido. Os dentes, apesar de tortos, estão bem tratados.
Para mim, caso encerrado. No entanto, Susan ainda precisava vir reconhecer o corpo do marido.
– Mas que diabos um advogado fazia vestido como mendigo?!
Pelo estado de nervo do delegado, prefiro não tecer terias com ele. Só agradeço a gentileza e me retiro, pensando no que direi à minha cliente.
No meu serviço normalmente trago más notícias aos meus clientes. Normal. Afinal, se me procuram, é porque as coisas já não iam bem. Mesmo assim é difícil.
“ – Sim, sua esposa tá te traindo.”
“ – Sim, seu genro desviou dinheiro de sua empresa.”
“ – Sim, seu marido pula a cerca. Não, a estagiária é inocente. Já o entregador de água...”
Toco o interfone. Susan pede para que eu suba.
Nestas horas gostaria de que Elena viesse comigo. Mas não é muito profissional. Tenho que dizer à minha cliente que agora ela é viúva. Tenho que dizer à minha cliente loiraça e gostosa que agora ela é viúva e tentar consolá-la em meu braços.
Vou te dizer! O ser humano não vale nada. Como pensei tão rápido num cena oportunista nessa? Ai, os pais de Elena é que estão certos.
Susan já espera de porta aberta. Sempre bem vestida.
Não sei se meu jeito me denunciou. Só sei que percebo o semblante dela se alterar depressa, chegando ao nervosismo com choro e sussurrando uns “não”.
Sem saber o que dizer, faço o que tarde percebo ser um tiro de misericórdia. Tiro a aliança do marido dela do meu bolso e a coloco em suas mãos.
Ela perde as forças e sou obrigado a ampará-la em meus braços.
Vejo a aliança rolar pelo chão.
Serviço feito e bem feito. Já posso descontar o cheque.



domingo, 10 de junho de 2012

SEM BONÉ, LUPA E CACHIMBO (parte III)


III

Antes de tirar o terno, revolvi ir até um dos estacionamentos dos bilhetes que encontrei no cofre. Um deles fica num prédio próximo ao do escritório. Entro normalmente. Tem tanta gente grã-fina entrando e saindo que o máximo que alguém pode reparar é na qualidade (ou falta desta) do meu terno.
Encontro a vaga descrita no bilhete. E o Corola está ali, intacto. Susan nem sequer pensou em levá-lo para casa. Disse que poderia ser útil à polícia. Mesmo assim me deu as chaves.
Procuro sinais de violência na lataria. Nada. Nem arranhão de garagem.
Abro e sento no banco do mo...
Nossa! Que que é isso?! Vou jogar meu quiném fora. Eu, aqui, achando que tenho carro...
Bancos de couro, dvd-player, GPS...
Não resisto e ligo o carrão.
Isso! Ainda vou ter uma carrão desses. Deixa só eu comprar primeiro as alianças. E financiar a casa... os móveis... Ai!! Bateu uma “deprê”.
Desligo a ilusão. Caio na real. Vamos ao trabalho.
Reviro tudo com muito cuidado. Nada. Nadinha, mesmo. Nem ao menos um batom perdido de Susan.
Sim, eu sei. Não estou usando o pronome de tratamento com ela, né? Preocupante...
Saio do carro. Fecho ele. E, enquanto caminho para a saída, reviro meu bolso.
O outro estacionamento fica mais perto do movimentado centro da cidade. Não é muito distante. Mas já é quase a hora do rush. Vou levar mais de meia-hora para chegar... Hum...
Torço o meu pescoço para trás que nem uma coruja e encaro novamente o carrão.
Um minuto e meio depois estou saindo com ele da garagem.
Ligo o ar-condicionado a toda. Paro no engarrafamento. Enquanto meia dúzia de motoristas de camisas suadas esticam o pescoço para fora dos veículos e dão novas profissões às mães de outros, eu ligo o DVD. Mas tento ficar ligado que não tenho pedal de embreagem.
Terno, gravata e carrão. Se os pais de Elena me vissem agora...
Mandariam me prender!
Isso. Finalmente. Depois dos quarenta minutos mais confortáveis de trânsito que já tive chego ao meu destino. Procuro uma vaga que se posa chamar de segura e levo mais uns cinco minutos para descer do carro.
Vejamos. Tenho a chave do Volkswagen, mas não a placa. E as vagas não são numeradas. E agora? Como saber qual é? O jeito é testar a chave em cada um. Mas espera aí, seu José! Digo, Victor. Vamos pensar um pouco. A chave é simples e surrada. Conheço o tipo. Tenho uma igual. Nada de alarme. Sorte a minha. Quase todos aqui tem uma luzinha piscando no para-brisas. Só um fusca e dois gols é que não. A chave não serve em nenhum.
Bem, havia mais um estacionamento. O jeito era sofrer mais cinquenta minutos de ar-condicionado até lá.
Finalmente o último estacionamento. Desta vez rotativo e sem numeração de vagas. Local simples, embora não tão barato. Motivo: falta de vaga na redondeza.
Infelizmente, desta vez, o padrão é carro popular sem alarme. Tem um bocado de golzinho para testar a chave. Tento um por um até que, finalmente, uma porta se abre.
Puxa, que cheiro! Um cheiro de roupa suja há muito tempo. Reviro o interior. Nada de roupa. Encontro umas moedas, umas cédulas velhas e rasgadas de baixo valor e mais nada.
Desço, abro o porta-malas. Um cheiro ruim mais forte ainda.
– Alto! Polícia! Ponha as mãos na cabeça!
Merda...

 parte II

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

SEM BONÉ, LUPA E CACHIMBO (parte II)



— S-sim. Digo, sim. Eu mesmo. Entre.
Abri passagem e diante de mim desfilou uma lindíssima loira de olhos azuis e boca vermelha saída diretamente de um filme Noir. Alta, de saltos altos, cabelos longos, vestindo um justíssimo vestido preto que parece ter ficado mais curto quando ela sentou-se e cruzou as longas pernas.
Belisquei-me discretamente só para ter certeza que tava acordado.
Acho que nem Elena ficaria tão bonita naquele vestido.
Elena...
Olho para a porta entre-aberta da divisória que separa minha sala/escritório do restante do Ap. Deslizo até ela e a fecho. Ligo o ar-condicionado para justificar.
— Desculpe não ter ligado antes para marcar, Sr. Victor. Mas estou um tanto aflita...
Mesmo?
Sento-me numa poltrona à frente dela.
— E o que lhe aflige, Sra. ...?
— Oh, perdão. Tá vendo? Meu nome é Susan Baldoni. E estou procurando meu marido.
Clássico.
— Continue.
— O nome dele é Lúcio Baldoni, advogado. Há quatro dias ele não aparece em casa e não dá notícias. A secretária dele não sabe dizer onde ele possa estar. Já liguei para os amigos e parentes e nada. Ninguém sabe de nada.
— Já foi à polícia?
— Sim. Sim. Passei horas na delegacia preenchendo papelada. Eles já estão investigando. Mas, sinceramente, Sr. Victor, acho que encontrá-lo não está no topo das prioridades deles.
— Entendo. Só para ficar claro: a senhora quer me contratar para encontrá-lo?
— Sim. Se o senhor não estiver ocupado com nenhum outro caso. Quero que este seja sua prioridade.
— Sim, naturalmente. - pego meu bloco de notas. — Mas quero que saiba que depois de quatro dias...
— ... ele já pode estar morto. Sim, eu sei. Os policiais me disseram.
— Não é isso. É que agora será certamente mais difícil de encontrá-lo.
— Se está preocupado com seus honorários, Sr. Victor, fique tranquilo. – ela abre a bolsa e me entrega um cheque de uma quantia razoável. — Creio que isto será suficiente para cobrir-lhe as despesas iniciais.
— Ok, senhora. Vejo que está determinada. – guardo o cheque, já pensando num par de alianças. Olho discretamente para a porta da divisória. Dorme, neném... — Vou precisar de algumas informações sobre seu marido.
Ela me dá fotos dele, endereço do escritório no centro, número da placa do carro, etc.
— Muito bem. Isso já é um bom começo. Mas agora preciso fazer algumas perguntas pessoais.
— Já esperava por isso. Quer saber se ele me traía. A resposta: é possível.
— Vocês não estavam bem?
— Bem? Estávamos ótimos! – diz, coçando o nariz. — Meu marido era, é um homem maravilhoso. Um homem de bem. Mas homens de bem também são tentados, não concorda, Sr. Victor?
Ela me olha tão diretamente nos olhos que chego a ficar embaraçado. E com um certo sentimento de culpa.
— E o financeiro? – pergunto rapidamente.
Ela olha pela janela, para o horizonte, onde o mar e o céu fingem se encontrar.
— Tivemos um início difícil. – diz, após alguns instantes. — Mas de uns seis anos para cá melhoramos bem. Não ficamos ricos. No entanto, temos uma vida que, digamos, pode-se dar ao luxo de pequenas regalias.
— Ele deve ser um bom advogado.
— Creio que sim. Não entendo de direito e nunca assisti uma atuação dele no tribunal. Realmente, nunca fui curiosa a respeito disso. Conhecia... conheço o lado pessoal dele. E isto me basta. Mas como o dinheiro estava aparecendo, então creio que sua carreira deva estar em alta.
Cruza novamente as pernas e tenta ajeitar o curto vestido sobre as coxas.
Um despertador soa.
Elena...
— Ah, bem. Isso é o suficiente para começar. – digo, já me levantando para abrir a porta. — Se não se importa, gostaria de dar uma olhada no escritório de seu marido.
— Imaginei isso. – abre a bolsa, retira um pequeno molho de chaves e me entrega, fazendo questão de apertá-lo em minha mão. — Nunca foi lá, se quer saber.
— Te manterei informada. – digo, abrindo a porta.
Ela desfila pela porta afora, e antes que eu feche ela se vira para mim com um sorriso, me olhando de cima a baixo.
— Ela é uma moça de muita sorte.
Sorrio, embaraçado, sem saber o que dizer. Mas ela segue seu caminho enquanto, tenho certeza, minha doce vizinha espia tudo pelo olho-mágico.
Ao fechar a porta eu sento um calor na nuca, como se fosse a visão de calor de alguma heroína enfurecida.
Viro-me. Com certeza é uma mulher-maravilha. E nua! Mas o olhar...
— Seu... negócio... parece ir bem.
— É que ela perdeu o marido...
— Percebi o luto.
— Quero dizer... ele sumiu.
— Sim, meu bem, claro.
Peguei o cheque e mostrei a ela.
— Já tô recebendo para isto.
— Se está sendo pago, é bom fazer bem o serviço.
Não gostei da mensagem nada subliminar naquelas palavras.
Ela se vira, volta para o quarto e tranca a porta. E, pela primeira vez, consegue se aprontar em menos de cinco minutos. Com um beijo seco e um tchau mais seco ainda se despede.
Por experiência eu sei que não adianta ir atrás. E também que ela faz muita manha só para se valorizar (como se precisasse...).
Bem, um problema de cada vez.
Pego as chaves e o endereço do escritório.
Vamos ver que casos nosso advogado tinha.

Prédio comercial grande, bonito e vistoso no centro do Rio. Moderno, frente toda espelhada. Nos primeiros dois andares fizeram um mini-shopping com uma pequena, mas luxuosa, praça de alimentação e algumas lojas de griffes famosas.
Coloquei meu melhor (e único) terno. Presente advinhe de quem? Assim dá para andar tranquilo pelo andares dos escritórios sem chamar a atenção de ninguém. Descolei até um grosso volume de direito tributário e um pequeno volume de direitos civis.
Pego o elevador. E por sorte sobe junto uma linda mulata. Ela me olha de cima a baixo e dá um leve sorriso que me parece mais de desdém. Será a gravata? Miro-me no enorme espelho que, não sei porque, insistem em colocar em alguns desses elevadores.
Ok. O nó da gravata tá meio torto. E terno não tão bem passado.
Conselho: se você for um executivo em ascensão, não brigue com a patroa. Ou, pelo menos, tenha um boa empregada.
Vigéssimo primeiro andar. Pelo menos o cara sonha alto.
Ali está. Lúcio Baldoni em letras elegantes numa placa de vidro.
Uso as chaves que Susan... Sra. Baldoni me emprestou.
Entro numa ante-sala pequena, mas confortável. Aqui, a mesinha da secretária, extremamente organizada. Ali, uma poltrona de três lugares e no canto um grande vaso de flores artificiais.
Acendo as luzes, fecho a porta e ligo o ar-condicionado. Passo pela divisória e entro no escritório propriamente dito. Não é nada grande. Mas tem espaço suficiente para uma grande estante com volumosos livros sobre direito e uma belíssima mesa em granito azul. Sim, azul. Só tinha visto um desses em fotos. É magnífico. Se a intensão é impressionar a clientela, funciona.
Na parede, perto da mesa, uma foto grande e emoldurada dele com sua bela esposa. Parecem felizes.
Sentei na confortável cadeira e comecei a vasculhar a papelada e os dossiês de processos. Estranho. Parecia que ele fazia coleção. Havia dossiês de processos já transitados em julgado há mais de seis anos. Em aberto mesmo havia apenas uma dúzia. Deviam ser clientes bem ricos para ele conseguir manter o padrão de vida que possui.
Ligo para Susan... tá, Sra. Baldoni, e pergunto pela secretária. Ela não sabe responder. Ele nunca mencionara o nome dela. Era sempre “a minha secretária”.
Dou uns dois giros na cadeira, pensativo. Olha só, pela janela dá para se ver o Cristo Redentor. E aí, grande chefe, dá uma ajuda aqui para o seu amigo. Tá, eu sei que já tô te devendo... Sim, tem mais de um mês que não vou à igreja... Dízimo? Eh, bem... deixa que eu me viro.
Fico mais alguns minutos pensativo, olhando aquele quadro na parede. Hum...
Levanto-me e afasto o quadro. Sim. Aqui está ele: o cofre. Clássico, mas nada inteligente. Agora é só abri-lo. Só...
Tento o óbvio, a data de nascimento dele. Quem sabe... Não. Nada. Ele não era tão burro assim.
Sento-me novamente na cadeira.
Será que a Sra. Baldoni sabe a senha?
Hum... Levanto-me novamente e rodo o segredo. Isso! Abriu. A data de nascimento da esposa. Nada inteligente. Nadinha mesmo.
Retiro algumas pastas dele e começo a examinar os documentos.
O quê? Cadê o dinheiro? Considerando a inteligência do nosso amigo até que seria possível encontrar algum. Mas não. Pelo menos isso ele deveria guardar no lugar certo: o banco.
Nenhum documento de grande valor por si só. Talvez estivessem no cofre apenas para ficar longe de algum olhar mais bisbilhoteiro.
Seguro da casa no valor de quinhentos mil reais. Uma boa cifra.
Seguro de um Toyota Corola do ano.
Bom carro, boa casa e, com certeza, uma boa mulher. Não dá para um cara desses querer sumir. Temo pelo pior.
Hum... chaves de um Volkswagen. Provavelmente a reserva. Por que dentro de um cofre?
Boa. Cartões de estacionamento. Dois perto daqui. Outro, perto da estação Central do Brasil. Hum... Três estacionamentos.
Ligo a copiadora e copio alguns documentos. Podem ser úteis mais tarde.
Uso o celular e filmo todo o escritório e tiro algumas fotos. Mais tarde dou uma olhada para ver se deixei passar algo.
Uma última olhada, desligo tudo e saio.
— Algum problema com o dr. Lúcio?
É a bela mulata que subiu comigo no elevador.
— Você o conhece?
— Só de vista. Ele não é de falar muito.
— Então não deve ser tão bom advogado.
— Ela sorri.
Percebo uma belíssima loira alta nos observando de uma das salas.
— Parece que sua chefe quer falar contigo.
—  Hein? - ela olha em direção à loira. — Ah, sim, - e se volta para mim — Ela é minha secretária.
Ai!... E eu ainda me considero detetive. Só porque a outra é loira e esta é mulata, pensei que...
— Me chamo Julia. Também sou advogada.
Parece que ela percebeu meu embaraço.
— Victor Liev. E não, não sou advogado. Estou só fazendo um favor para a Sr. Susan.
— Um favor?
— É. Parece que o marido também não tem comparecido em casa.
— Céus! Será que aconteceu alguma coisa? Ela já deu queixa na polícia?
— Já. Não estiveram aqui?
— Não. O senhor é detetive?
— Particular, sim. - embora a mancada não me desse crédito.
Novamente ela sorri. Parece que seus olhos dizem: “Pobre Lúcio. Tá perdido.”
Entrego-lhe um cartão e peço que me ligue, ou para a Sra. Susan, se souber de algo.
Desço pelo elevador.
Que bela mulata!
Elena...


parte I                                                                                                                              parte III


sábado, 4 de fevereiro de 2012

SEM BONÉ, LUPA E CACHINBO (parte 1)


    Hum... Domingo.
    Hum... Domingo de Sol.
    Hum... Domingo de Sol no Rio de Janeiro.
    Abro a janela do meu quarto para respirar fundo.
    O Sol já tá lá em cima.
    Lá em cima?!  Putz, quase meio-dia!   Elena deve estar muito brava a esta hora. 
    Procuro meu celular.   Cadê o bendito.  Ah, sim.  Deve estar no escritório. 
    Corro para minha sala.  Sim, minha sala.  Este é meu ap/escritório. E Elena é minha futura esposa.  E antes disso, minha futura noiva.  Hoje, minha talvez-ainda-namorada.
    Achei.  Como é que você foi parar de baixo da almofada?  Espero que ela...
    Nove ligações perdidas!  Verifico o que já sei.  Elena.
    —  Oi, querida. ...  Sim, eu sei que horas. ...  Sinto muito.  ...  Não, eu não tava bebendo.  Você sabe que sou um homem sério. ...  Querida, nem todo homem sério tem a sorte de ter um emprego estável. ...  Ah, que isso...  Você sabe que sou um jovem empreendedor.  Tenho meu próprio negócio.
    Ela nunca considerou ser detetive particular exatamente um negócio.   Para ela, e para os pais dela, um homem sério tem que ter um emprego fixo, com um salário no mínimo razoável, freqüentar uma igreja, não fumar e não beber.  Só me deixaram o futebol.
    —  Ah, que isso...  A gente pode lanchar agora, pegar umas horinhas de praia, depois almoça  ...  Sim, ou janta...  ...  Você tá de gozação! ...  Não.  Pode dizer para sua mãe deixar o frango e a farofa na geladeira.  ...  A praia tem ótimos quiosques. ... Tá bom.  Tô aí em vinte minutos. ... Outro... Tchau.
    Calção, sandálias, camiseta, óculos-de-sol, celular, chaves e porta.
    Antes de sair correndo escada abaixo, ajeito a placa na porta.

    Victor Liev
    Detetive Particular.

    —  Bom dia, Mr. Lie.  Ou boa tarde. – diz Dona Márcia, uma velhinha “simpática”, saindo do elevador.  Ela é minha vizinha do apartamento exatamente em frente ao meu.  E depois que iniciei meus negócios, ela instalou um olho-mágico em sua porta.
    Respondi com um aceno e tomei meu rumo.
    Ela gostava de implicar comigo com aquele apelido.  Sei que o “mister” é pura implicância, como se me chamasse de metido por causa do nome. Mas não sei se a omissão do “v” foi de propósito ou se por dificuldade de pronúncia.   E pior é que pegou.  Principalmente depois que alguém descobriu que “lie” significa mentira em inglês.
    Pois é.  Contrate o Sr. Mentira para descobrir a verdade. 
    Se eu soubesse inglês, não teria criado esse nome.
    Isso mesmo.  Criado. Meu nome verdadeiro é José Maria da Silva.  Fala sério!  Você contrataria o Zé Maria para descobrir se sua esposa tá te traindo?  Não dá nenhuma credibilidade, não é?  Um nome estrangeiro sempre tem um impacto maior.  Mas como vocês já viram, o tiro praticamente saiu pela culatra.
    Em poucos segundos desço as escadas.  Segundo andar.  Nem vale a pena esperar o elevador.
    Garagem, carro, rua, quebra-mola, sinal-vermelho, relógio, sinal-verde, rua, quebra-mola, rua, estrada, acelerador, estrada, estrada, estrada, rua, freio, quebra-molas, rua, vaga, freio-de-mão, janela, namorada.
    Antes que eu chegue ao portão, ela já vem saindo.
    Por vezes eu paro ao longe ou fico esperando no carro só para vê-la desfilando.  Modéstia à parte, minha namorada é surpreendentemente linda.  Uma loira alta, esguia, com um corpo bem delineado em duas horas diárias de academia e beneficiado pela genética e pelos seus vinte e oito anos.  Anda ereta, de cabeça erguida.  Não por vaidade ou metidez.  Esse é simplesmente o seu jeito. 
    E você acredita naquele ditado que toda loira é burra?  Muito engano seu.  Ela é formada em administração de empresas, tem pós e já tá começando um mestrado.  É gerente de um supermercado nada pequeno na região.  E eu?  Bem, é melhor nem falar nisso.  Mas já deu para entender a implicância dos pais dela por mim, né?
    Abro para ela a porta de meu Gol 1.0 de ar-condicionado pifado e direção nada hidráulica.  É que ela não gosta de pedir o Corola do pai emprestado.
    Tá, já sei.  Agora você sabe porque me chamam de Mr. Lie.  Mas juro que é tudo verdade.  E apesar de ser detetive, ainda não descobri o que esse monumento viu em mim.  Certamente tenho algo de grandioso... o caráter.  Falo sério!  Sou um bom caráter.  Ou ao menos procuro fazer de tudo para ser.  Tanto que já tive várias namoradas e nunca traí nenhuma (ai... por quê ninguém acredita em mim?).
    Chave, ignição, seta, retrovisor, acelerador, rua, freio, quebra-molas, acelerador, sinal-vermelho, freio, relógio, sinal-verde, acelerador, estrada, estrada, estrada, freio, pedágio..., acelerador, estrada, estrada, estrada, praia... acostamento, carros, carros, vaga, seta, freio-de-mão.
    Ah, finalmente praia e o delicioso mar!  E esta praia é mesmo especial.  Para começar, não se tem acesso por ônibus, só se chega de carro.  Isso diminui bastante a concentração de povão nas areias.
    Elena se adianta para garantir um bom lugar e estender a toalha.
    Essa é uma cena que faço questão de parar para ver.  É só ela pisar na areia que todos os marmanjos se voltam para ela.  Alguns ainda dão o vacilo de deixar a companheira perceber.  E não se passa dez minutos, as águas a frente só fica com mulheres.  Os homens todos resolveram estranhamente pegar um sol.
    —  O senhor é o segurança dela?
    Sorte do pentelho a mãe o ter puxado pelo braço.
    Armei a barraca e fui direto para a água. 
    Elena curte mais a areia.  Gosta de pegar um bom bronzeado.  Mas sempre fica de olho quando eu entro na água.  Será que minha natação não convence?  Ah, eu já disse que ela foi campeã de natação no ginásio?
    Não demorei muito a voltar para a areia e dar-lhe um demorado beijo na boca.
    Podem olhar, marmanjos, que não tenho ciúmes.  Minha experiência profissional já mostrou que não adianta.  Quando a mulher quer trair, a hora do almoço é suficiente.  Então o jeito é confiar.  E eu confio na minha mina.  E se quiser fazer fofoca dela é bom que tenha provas, porque eu tenho um três-oitão.  Brincadeira.  Mas tenho bons amigos advogados que gostam de ganhar um extra fácil por calúnia e difamação.
    Peguei o bronzeador e comecei a passar-lhe pelas costas, nádegas...
    Isso!  Morram de inveja, que eu gosto.  He, he. E aí, companheiro, quer um pouco para passar na celulite da patroa?
    Podem olhar.  Que pena, né?  Esse monumento aqui já tem dono.  Tá, é verdade.  Ainda falta registrar em cartório.  Mas já tô cuidando disso.
    Ela sorri.  Ela sempre sorri para mim.   
    Senta.  Compra dois sorvetes do ambulante.  Me dá um.
    Sim, ela pagou.  Já desisti de tentar ser sempre um cavalheiro com ela.  Umas vezes ela paga, outras eu pago, outras a gente divide.  Não fazemos contas.  E é assim que ela gosta.  Eu não me importo.  Não sou machista.  Não me sinto nada constrangido se ela sacar o cartão de crédito primeiro para o garçom.
    Pego o jornal para dar uma olhada nos esportes.  Mas não adianta.  Meus olhos logo caem sobre a página policial.
    Mais dois mendigos, digo, moradores de rua mortos nessa madrugada.  Com esses já são onze.  Polícia sem pistas.  Parece que algum assassino em série está fazendo uma “limpeza” nas ruas, a seu modo.  O motivo?  Vá saber!  Talvez seja simplesmente isso mesmo, limpeza. 
    Por mais humanitário que você seja, tem que concordar: mendigos poluem visualmente a cidade.  Tá, moradores de rua.  É claro que matá-los não é e nunca foi a solução.  E qual é a solução?  Sei lá.  Isso já é papo para os sociólogos de plantão.
    Passo os olhos pela página dos quadrinhos.  Pelo menos esses me fazem rir.
    Fecho o jornal e o jogo de lado.
    Deito-me confortavelmente à sombra (sempre).  Fecho os olhos para melhor sentir a brisa do mar e ouvir seus murmúrios.  Deixo o tempo passar sem pensar ou me preocupar com nada.  Essa é a tarde de Domingo que gosto.


    Abro os olhos ofuscados pela luz.
    Levanto-me jogando o cobertor para o lado.  Fecho as cortinas.  Não quero que meu anjo acorde.  Observo, com um belo sorriso de satisfação no rosto, aquele corpo dourado em cima de minha cama.  Sou um cara de muita sorte.
    Essa foi uma noite de Domingo que gosto.
    Tá, eu sei, minha mãe vive me dizendo isso.  E a mãe dela também.  Deveríamos ter ido à igreja.  E eu sempre fui.  Sempre fui um bom cristão.  Um dos mais certinhos que eu mesmo conheci.  Mas a gente vai vivendo, conhecendo mulheres, vendo presbíteros, pastores e madames traindo seus cônjuges e devagar parece que as convicções vão desmoronando.  Tenho raiva quando penso que a maioria dos irmãos parece estar na igreja por ter que dar certa satisfação pessoal e não exatamente por fé individual.
    Saio do quarto.
    Hum!  Fora do ar-condicionado sou lembrado que ainda estamos no verão. 
    Escovo os dentes e tomo um longo banho para refrescar.
    Preparo um café.  Só brasileiro mesmo para tomar café numa manhã super quente de verão.  Mas não consigo começar bem o dia sem ele.
    Provo.
    A campainha toca.
    Engasgo.  Olho o relógio.  Nove e vinte e cinco.  Já era hora de estar no meu escritório.
    Corro para o quarto e tento me arrumar o mais rápido possível sem fazer barulho.
    Novo toque.
    Preciso arrumar um escritório decente e uma secretária.
    Felizmente morro num país tropical.  Nada de terno e gravata.  Um tênis, uma calça jazz de bom corte e uma camisa de marca já é o suficiente.  Dois minutos e meio e já estou abrindo a porta.
    Acho que meu queixo caiu.  Sim, ele caiu.  Ela olhou para minha boca.
    — Oi.  Sr. Victor Liev?